Charles Landseer/Acervo IMS

Charles Landseer/Acervo IMS

Carta à rainha louca

Em processo

22.12.16

Tenho muitos textos em andamento. Estas são as páginas iniciais de Carta à rainha louca, romance em que estou trabalhando agora para finalizar no primeiro semestre de 2017. Há anos que trabalho nele, por períodos. Tem origem bem antiga: nos anos 1970 e 1980 eu me meti a historiadora e fui buscar a vida das mulheres brasileiras no período colonial. Descobri coisas incríveis, mas os trabalhos que produzi naquele tempo tinham um estilo acadêmico, onde só cabia uma suposta “objetividade” dos fatos. Fiquei sempre com um sentimento de dívida para com aquelas mulheres, e a vontade de dar-lhes voz e vida. Daí esse romance, bem diferente dos outros que escrevi.

 

1779

Senhora,

Perdoai, Vossa Majestade, a esta mulher − enlouquecida pelas penas do amor ingrato e de grandes vilanias cometidas por aqueles que se creem mais poderosos que Vós mesma − por vir-Vos interromper com seus sofrimentos de mínimo relevo, em Vossas orações e em Vossos atos régios tão urgentes para Vosso Reino e para aquele de Deus. Pois mesquinhos são os infortúnios que Vos hei de relatar se comparados àqueles trabalhos que, desde Vossa régia infância, certamente tendes passado, que Rainha sois, mas nem por isso sois menos mulher e sofrer e chorar é o quinhão de todas as filhas de Eva, não obstante sua condição neste mundo, porque em todas as condições, aqui nestas colônias, em África, nas Índias, na China ou no Reino, no paço real ou na mais pobre aldeia do Vosso Império, estão submetidas às leis dos homens que muito mais duras são para as fêmeas e só para elas se cumprem, pois todos os seus pais e irmãos e maridos e filhos e varões quaisquer, seculares ou clérigos, só as querem para delas servirem-se e para dominá-las como aos animais brutos se faz, blasfemando vergonhosamente ao emprestar-lhe a Deus Nosso Senhor tão cruel desígnio. Perdoai-me a rasura, Senhora, que se me ia a pena correndo sem peias pelo papel. Corria a pena levada por inconvenientes palavras que teimam em escapar do sítio onde trato de tê-las bem atadas no meu espírito – já que delas não me posso livrar – para que não me venham a fugir pela boca e dar razão a quem me toma por louca.

Por louca e desobediente encarceraram-me neste Recolhimento da Conceição, no alto das colinas desta cidade de Olinda, famosa por sua beleza e pelo fausto ostentado em outras eras, quando branco e doce era o ouro destas terras. Bela cidade que a mim, porém, não delicia porque quase só a vejo retalhada pelas grades da única e estreita janela desta cela de não mais do que uma braça quadrada.

Há longos anos trouxeram-me para cá, com o fim de aguardar alguma nau de carreira que me levasse a Lisboa, para ser julgada pelas Cortes por um crime que me foi assacado, e aqui me esqueceram. Para que me recordem é que agora Vos escrevo, Senhora, pois que em vós se juntam duas coisas que de raro se podem reunir: o serdes rainha de cetro e coroa, capaz de ordenar e fazer o bom e o justo, acima de todos e quaisquer súditos, de qualquer sexo, que habitem as Vossas terras, e o serdes mulher, capaz de saber o que sofre outra mulher que clama por justiça.

Há nove anos vêm e vão as naus e não me levam. Já neste ano da Graça de mil e setecentos e setenta e nove, por aqui passou Saudade, também passou Flor do Mar e Santa Helena e Madalena e Rosa e todas as santas, nobres ou plebeias, que vogam no mar oceano. Vinham de África, pejadas de negros destinados a matar a fome das Vossas minas que os devoram sem demora. Passados poucos meses, pude vê-las na linha do horizonte, voltando para o Reino sem aqui aportar, abarrotadas de ouro, por certo, e não me levaram.

Numa noite na qual brilhava a lua e não me vinha o sono, como sempre me acontece e fico então a mirar a estreita faixa de oceano que me permite minha janela – com saudades de uma vastidão que não conheço, mas minha alma deseja tanto! – vi claramente passarem velas brancas bem próximas deste outeiro, assim me pareceu, e pensei que me poderiam ouvir os navegantes, se eu chamasse. Esperancei-me, gritei com todas as minhas forças, sem que, porém, me ouvissem os marinheiros e por muitos dias desatinei e bradei com dor e fúria. Ouviram-me, sim, as outras que vivem entre as paredes deste cárcere, de modo que me disseram lunática e, por castigo de meus gritos, trancaram-me na cela por vários anos, que mais os alongavam cada vez que a conjunção dos astros e as dores da alma e do corpo desencadeavam meu desespero e meus gritos. Mas eu, por mim, digo que mais loucas do que eu são elas que se deixam prender, maltratar e tosar como ovelhas, caladas, que a tudo se submetem. Mais loucas ainda estão as que deviam ser as mais dignas, aquelas que têm a autoridade neste Recolhimento, fazem-se chamar Madres pelas demais e deveriam protegê-las, conhecer seu lugar e pelejar pela verdade, mas fingem júbilo quando aqui aparecem os lobos vorazes que se apresentam como seus benfeitores e, sem lutar, deixam esvair-se a vida como se muitas vidas tivessem. Loucas, tolas, sim, são as que jamais gritam.

Peço-Vos benevolência para com esta que Vos escreve uma carta assim desordenada, na qual muitas rasuras haverá, que delas não me poderei furtar por andarem-me as ideias à roda, de tal modo que eu mesma por vezes me suspeito insana. Como poderia eu, de outro modo, conceber as estranhezas que penso e jamais ouvi pronunciar por outrem?

Prosseguirei nas folhas rasuradas não por desrespeitosa para com Vossa Majestade, mas por pobre e humilhada que vivo, mulher, destituída de bens, dada por louca e sem contar com nenhum varão que me assegure alguma proteção. Meu pai, Deus o levou há muitos anos, outros do meu mesmo sangue nunca conheci, jamais vieram a estas terras; Gregório, o velho negro que devotadamente me servia e guardava, não como escravo, mas liberto e grato a meu pai, levaram-no agrilhoado e certamente em suplícios o mataram; o bastardo Diogo Lourenço de Távora, que me comoveu com o relato de suas desgraças e um dia jurou amar-me apenas para colher a flor da minha inocência, quem sabe por onde andará, a colher e a desfolhar outras donzelas. Assim vivo destituída de tudo senão de meus pensamentos e palavras ditas a mim mesma e a Deus, de minha honra, minha fé e duas cuias de papa de milho a cada dia, ordenadas ao Recolhimento pelo oficial do Reino que aqui me encerrou. Porque nestas colônias que se dizem Vossas, mas são mais do Demônio do que Vossas, é assim que se vive quando não se têm rendas, tratados os cristãos pobres como se fossem menos do que os animais de trabalho.

Já não me restam senão farrapos da ganga que cobria minha enxerga de palha, único bem que me permitiram trazer comigo, e ando mal coberta de andrajos e vergonha. Só não vivo inteiramente desnuda, como uma bugra, porque de mim se apiedou uma das escravas desta casa, deu-me uma bata de ralo madrasto, das que tecem elas mesmas para vestirem-se, e fabricou para meus pobres pés uns grosseiros tamancos de madeira que muito me têm servido desde então. Não cuideis que exagero, Majestade, pois é a pura verdade o que Vos digo. Esse é o destino das mulheres que, não sendo cativas por lei, pior vivem do que as escravas vendidas a bom preço nos mercados, porque a estas proveem os senhores para que não se lhes perca o cabedal, como não se deixa perder por nada uma mula ou um jumento. Já as mulheres brancas que nada possuem, que não servem para o trabalho nos canaviais e nas minas, nem para parir crias cativas para seus senhores, tal qual sou eu, não estando destinadas a dar-se em matrimônio pelo bom dote e como penhor de alguma aliança, não se podendo tampouco vendê-las ou não se querendo comprá-las, nada valem. Ninguém gastará com elas seus bens nem se importará com a sua decência e não terão com que cobrir-se, a menos que tenham a desvergonha e os dotes de corpo para oferecerem-se como rameiras no fundo das bodegas e estabelecer-se em bordeis. E de nada lhes adianta queixarem-se ao bispo ou aos frades porque no mínimo lhes farão ouvidos moucos e, se calhar, antes as preferirão despidas para nelas satisfazer sua luxúria do que vestidas e guardadas na inocência.

Não creiais, Senhora, que assim são as coisas apenas para as mulheres de baixa condição, como eu, filha de um labrego de terras pobres de Vosso reino que, exausto de lavrar inutilmente um chão de pedras, meteu-se na marinhagem. Sempre foi assim nesta beira de mundo, mesmo para as santas e nobres monjas clarissas que vieram de Évora, no ano de mil seiscentos e setenta e sete, para aqui fundarem, na cidade de São Salvador, o primeiro mosteiro de freiras professas a santificar estas terras, sendo todas elas de boa estirpe e professas de véu preto. Depois de viver por anos no convento do Desterro, quando se lhes gastaram os trajes trazidos nas arcas do enxoval dado por El Rei para que cruzassem o oceano, já não podiam sequer apresentar-se no coro e menos ainda no parlatório por falta de hábito com que se vestir. Enquanto isso, iam e vinham as cartas da Bahia a Lisboa e de lá para cá, em controvérsias sem fim sobre a matéria, sem que nem a Abadessa do Desterro, nem os homens-bons do Senado da Câmara da Cidade de São Salvador, nem os senhores Ministros da Mesa de Consciência e Ordens em Lisboa, nem os benfeitores do Mosteiro de Évora se achassem obrigados a vesti-las, de modo que todas elas, até mesmo a primeira e venerável abadessa, Dona Margarida da Coluna, diz-se terem terminado seus dias trancadas em suas celas, pela indecência que seria andarem elas esfarrapadas, mostrando pelos claustros suas pobres carnes. Nem sei se ao menos mortalha tiveram quando se foram deste Vosso mundo para o dos céus.

Não duvideis, Senhora, e nem penseis que é fruto de meu juízo desvairado esta história que Vos conto. Encontrareis tudo isso firmado em papéis e autógrafos e rubricas e selos e sinetes de todos esses senhores e senhoras, bem guardados no cartulário do convento da Bahia onde, por anos, gastei minha vista copiando registos à luz de velas e toscas candeias. Se um dia o forem verificar no Desterro, só darão falta de alguns fólios que eu mesma dali furtei e que hoje me servem para escrever-Vos, como vós mesma podeis ver. Por certo, porém, os mesmos papéis ou suas cópias deverão achar-se nos Vossos arquivos ultramarinos em Lisboa, pois para lá se destinavam ou de lá vinham. Bem sabeis com que escrúpulos se copiam e recopiam os papéis nesses Vossos reinos, para que não restem dúvidas sobre quem neles tem o poder, para que se possam comodamente alimentar, abrigar e vestir às Vossas custas a milhares de copistas, escrivães, amanuenses e notários e para que se percam e se confundam os espiões que se aventurem nos labirintos de Vossos escaninhos, mais bem guardados por Vossos funcionários do que o seriam pelo touro de Creta − por certo para que não haja perigo de que lhes desvendem os segredos e lhes tomem a propina − e nos quais nenhum Teseu poderá encontrar-se, pois o fio de Ariadne ali haveria de enlear-se para sempre.

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