O poeta Eucanaã Ferraz

O poeta Eucanaã Ferraz

Mundo musical paralelo

Música

21.12.16

Sucesso de audiência em dezenas de versões que cobrem quase todo o planeta, o show de talentos The Voice não busca a voz singular, no sentido de ímpar, de sem igual, de “uma voz única”. Ao contrário. Independentemente de países, jurados, concorrentes ou estilos musicais, “a voz” persegue o singular no sentido de “uma única voz”, de igual, de homogeneizada, de produzida numa fábrica de salsichas melismáticas.

Embora o título da série idealizada e apresentada pelo poeta Eucanaã Ferraz para a Rádio Batuta também viesse no singular, A voz humana, a simples presença do adjetivo já sinalizava a multidão de possibilidades do canto. Dezenas, centenas de vozes únicas. Em seus 50 programas, recém-encerrados no dedicado inteiramente ao Caetano Veloso mais experimental, Eucanaã propôs – e continua propondo, a quem ainda não os ouviu – um fascinante recorte do que homens e mulheres podem fazer com o ar e uma laringe.

A única bússola que orientou Eucanaã nessa viagem foi o seu fascínio pelos prodígios d’A voz humana. Ele não segregou clássico de popular, popular de folclórico, solo de coral, masculino de feminino, ocidental de oriental, religioso de profano, Stockhausen de Marlui Miranda, monges tibetanos de Ali Farka Touré, nada de nada. Em suas 50 meias horas semanais, o poeta carioca tanto chamou nossa atenção para as características menos familiares no principal instrumento de trabalho de um Caetano ou de um Milton Nascimento (juntos no programa 14, intitulado O cristal) quanto nos apresentou a artistas fascinantes, como o greco-egípcio Demetrio Stratos (no programa 9), a espanhola Fátima Miranda (programas 19 e 20) ou o francês Ghédalia Tazartès (programa 35).

A espanhola Fátima Miranda, estrela de dois programas da série

A espanhola Fátima Miranda, estrela de dois programas da série

Stratos e Miranda jamais seriam admitidos numa seletiva do The Voice, como aliás nem Frank Sinatra, que jamais gritou. Os dois extraíram das cordas vocais sons que põem em xeque o entendimento corrente não apenas do que seja canto, mas também do que seja voz. Ouvi-los é despertar – de uma forma quase brutal – para o quão limitada é nossa zona de conforto auditiva. Perto deles, e somente perto deles, Tazartès pode até soar como um cantor convencional, um Tom Waits mais amalucado. A beleza áspera de suas composições reaparece nas interpretações “bêbadas” da Ave Maria do rito cristão e da Ave Maria de Schubert. Eucanaã vai ao ponto quando afirma que o francês habita “um mundo musical paralelo”. Paralelo porque guarda uma relação colateral com o nosso.

Dentro do plano de voo de Eucanaã, cada ouvinte estabelece suas escalas favoritas. Sim, está claro, Tazartès é uma das minhas, assim como o programa dedicado a um registro que me parece extraterreno, contemplado no programa A voz além dos gêneros: o contratenor (o de número 43 na série). Correspondente ao alto ou ao soprano feminino, o registro masculino mais agudo parou de ser obtido com a retirada dos testículos de meninos no século XIX. Portanto, os intérpretes contemporâneos cantam a partir de técnicas vocais, como o falsete, o que os torna ainda mais assombrosos que os castrati. Eucanaã fez uma seleta que vai do inglês Alfred Deller – que praticamente reinventou o contratenor – ao argentino Franco Fagioli, que abre o programa cantando a linda ária “Un cor que ben ama”, da ópera Il Valdemaro (1726), do italiano Domenico Sarra.

Sendo Eucanaã o poeta que é, as relações entre palavra, fala e canto não poderiam ter ficado de fora de A voz humana, merecendo programas como o de número 2, que em janeiro trazia uma parceria entre Mário Lago e Hermeto Pascoal, “Três coisas. No 24º programa, estreado a 14 junho, Eucanaã apresentou canções referidas na obra do escritor irlandês James Joyce. Afinal, estava-se a dois dias do Bloomsday, data em que a cada ano se celebra a perambulação de Leopold Bloom por Dublin no romance Ulysses. Ouviu-se, por exemplo, “The last rose of summer”, com a soprano alemã Anna Lucia Richter, e um trecho do célebre monólogo obsceno da mulher de Leopold, Molly Bloom, gravado especialmente para o programa pela cantora e performer paraibana Numa Ciro, em arranjo do pernambucano Flaviola.

O inglês Alfred Deller, que trouxe o contratenor para o século XX

A graça de se ouvir tanta coisa interessante teria sido comprometida se a apresentação do programa fosse exibicionista e/ou hermética. Nada mais diverso do que se ouve em A voz humana. Eucanaã compartilha o seu conhecimento com um prazer tão evidente, e o faz com tamanha clareza, sem se alongar em explicações ou teorizações desnecessárias, que só resta ao ouvinte viajar na sua viagem, descobrir com suas descobertas.

Eu agradeço, penhorado.

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