A voz de alguém nessa imensidão

Música

22.02.16

Em sua ampla maioria, o ouvinte de música é um consumidor com chaves bem claras e definidas. Ele escuta, grosso modo, ou aquilo que chega através do consumo de massa (rádios, televisões, vídeos, consensos populares), ou aquilo que se constrói como um gosto pessoal, um cânone particular. Ouvimos aquilo que aprendemos a gostar e raramente saímos desse espaço adequado de fruição. Eucanaã Ferraz, curador e idealizador do programa A voz humana (cujo último episódio da primeira parte da série vai ao ar amanhã, terça-feira, 23 de fevereiro), convida o ouvinte para deslocar justamente a sua audição comportada. Suas escolhas para a série de programas proporcionam novas escutas e ampliam territórios sonoros. Mais do que uma série sobre a voz, é um trabalho de pesquisa que reserva surpresas – e revela belezas.

Vale notar que tal convite transgressor – e sedutor – de Eucanaã desestabiliza o que talvez seja o bem mais precioso do amante de música popular, principalmente em países como o Brasil: a voz. São as vozes entoadas nas canções populares que nos embalam, que alimentam sonhos, que nos arrebatam e tornam-se parte da vida. Através delas, criamos mitologias sagradas de divas e rainhas, inventamos esperanças e iluminamos tristezas. Ela é o centro da canção, fortaleza protegida do ruído e da dissonância, canto puro que entoa amores e revoluções. Muitas vezes, aliás, a voz foi o próprio tema do que se canta. Na música popular brasileira, por exemplo, sabemos que são as grandes vozes que assinam a música, mais até do que o compositor ou letrista que não canta. Nesse sentido, é salutar que a seleção de músicas e temas presentes nos programas lembre a todos que o canto afinado, redondo e harmônico que habita nosso imaginário musical é apenas uma das diversas formas de usarmos a voz na sua relação com sonoridades das mais diversas matrizes.

Ao dividir a série de programas em temas que vão desde técnicas como o vocalise, a capella e o scat, até conexões poéticas como as relações da voz com a transcendência e o sagrado, foi dada ao ouvinte a oportunidade de transitar por diferentes épocas, estilos, países, timbres, culturas musicais e tradições. A música clássica em suas muitas vertentes se junta ao jazz e ao popular, e cada programa apresenta algo que às vezes pode ser inédito para parte dos que escutam. Essas peças desconhecidas pela maioria são fruto de uma pesquisa apurada, que permite ao ouvinte a descoberta permanente de novos abismos sonoros. Essa qualidade de escolhas por parte do idealizador do programa faz com que Rachimaninoff soe tão contemporâneo quanto Philip Glass.

Ao investir no experimento e na rasura dos lugares comuns, A voz humana articula temporalidades e frescor. A presença de Meredith Monk, Ella Fitzgerald, Laurie Anderson ou Montserrat Caballé, escolhas mais conhecidas para quem admira o canto e seus experimentos, não anulam grandes surpresas. Caetano Veloso interpretando Monk, Tetê Espíndola recitando Lewis Carrol em tradução de Augusto de Campos e arranjo de Arrigo Barnabé, versos de Mallarmé com melodias de Debussy ou ouvir as vozes de Jacques Prévert, Herberto Helder e William Burroughs em leituras de poemas já valem cada minuto necessário para embarcar nessa série.

O leque de músicas, cantos, falas, sussurros, silêncios e hibridações vocais que é possível ouvir através dos programas provoca alguns pontos de reflexão para audições de ouvidos mais curiosos. Percebe-se que a voz humana, além de instrumento, é pura potencia inventiva. São cantos que, muitas vezes, empurram seus limites. Podemos ouvir artistas que subvertem expectativas e aprofundam técnicas em níveis pouco explorados em performances precisas. Às vezes temos longas peças cujo uso da voz em seu estado inventivo torna-se um contraditório exercício de força e delicadeza.

Outro ponto importante para se ressaltar é a lembrança do lugar já consagrado de um artista como Vinícius de Moraes, exímio criador da palavra em suas múltiplas frentes de ação. Em programas diferentes, temos sua fala de poeta, seu poema musicado pelo piano de Tom Jobim e seu canto de compositor. Em uma gravação caseira do “Soneto de separação”, um trunfo imbatível do programa, Vinícius lê o poema e, logo em seguida, Tom o canta com uma melodia perfeita. Essa dupla fruição de um mesmo objeto literário-sonoro (o poema falado e cantado) sintetiza toda a íntima história entre a poesia e a canção popular brasileira.

Há uma peça, porém, que sintetiza a qualidade e apuro de repertório de A voz humana: é a leitura de “Três coisas”, um texto recitado primeiramente só pela voz de seu autor Mário Lago para, logo em sequência, ser musicado por Hermeto Pascoal. Mas não se trata de sobrepor posteriormente uma melodia ao texto, como faz brilhantemente Jobim com o poema de Vinícius. Hermeto, como um ourives sonoro, retira da leitura de Lago sua própria musicalidade. Notas, ritmos e acentos já estão encravados na voz, disponível para ouvidos absolutos como os de Hermeto, ou para ouvidos atentos e sensíveis como os de Eucanaã Ferraz. A Voz Humana é uma série para ouvirmos com uma espécie de atenção disponível, divagando sobre a força da voz na sua invenção sonora que devora mundos.

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