Não haverá entrega do Prêmio Nobel de Literatura em 2018. E o motivo é sério. Abuso sexual, tráfico de influência, acobertamento, favorecimento e um júri esvaziado por causa das denúncias, que tiveram como pivô o casal Katarina Frostenson e Jean-Claude Arnault, obrigaram a Academia a adiar o prêmio de 2018 para 2019, quando dois escritores serão escolhidos. O debate sobre o escândalo está apenas começando e deve intensificar questões que toquem na ainda problemática relação entre literatura e política, e mecanismos de poder agindo na longa duração. Já passou da hora de superarmos certa blindagem do campo literário como algo que se formaria naturalmente por meio de escolhas puramente estéticas. A arte pairando acima da história e dos constrangimentos sociais.
O ano do Nobel sem Nobel de Literatura nos faz lamentar pelas vítimas de abuso e pelos esquemas mafiosos que parecem estar inseridos em qualquer tipo de agrupamento. No entanto, esse vazio permite uma pausa para estranharmos alguns aspectos da sociedade contemporânea.
Foi nos Estados Unidos, na esteira das lutas pelos direitos civis, que uma outra batalha se armou. O debate do cânone iniciado nos departamentos de letras das principais universidades daquele país arrancou da literatura certa aura de pureza e universalismo, e colocou em questão obras e autores, e também escolas teóricas, métodos e críticos.
A literatura voltava a encontrar a relevância perdida há décadas, mas inserida em um circuito de crise e questionamento de seu papel na sociedade. De musa intocável passava a ser atalho privilegiado para a descoberta de estruturas de poder e opressão. Em sua forma cifrada estavam camuflados discursos violentos e excludentes e o que começou com a pergunta do porquê não haver negros no cânone, mudou radicalmente a forma de se ler e entender literatura. Para essa nova problemática, a sociologia encabeçada por Pierre Bourdieu ganhou terreno e se firmou como a arma teórica mais preparada para evitar mistificações agora consideradas típicas (e inaceitáveis) do campo literário. De objeto inefável, a literatura passou a ser testemunho dos discursos de poder.
Artista símbolo da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, em 2016 Bob Dylan seria agraciado com o Nobel de Literatura. A Academia, uma instituição tristemente anacrônica em relação ao debate resumido até aqui, colocava em seu panteão alguém “de fora”. A seguir tento avaliar algumas questões formais dessa escolha e como ela tensiona o campo literário e revela o funcionamento de outras estruturas de poder.
Dylan demorou a responder ao anúncio de sua premiação e não esteve presente na cerimônia oficial de entrega. Ou seja, tudo no melhor estilo do artista que reiteradamente (des)encarnou os papéis que foram sendo grudados nele durante toda a sua meteórica carreira. De profeta da geração engajada dos anos 1960 a traidor do movimento, foi também o recluso, o maldito, o pop star e o junkie. Sempre bagunçou a cabeça de fãs e jornalistas ao falsear a própria biografia, as posições políticas e intenções artísticas. O fato é que, assim como a equipe do Nobel, nós nunca sabemos onde está (e para onde vai) Bob Dylan.
Patti Smith conta que sua mãe lhe comprou um LP de presente porque achou que a foto do rapaz na capa parecia com o tipo de artista que ela gostava. Ela tinha dezesseis anos e aquele seria o seu primeiro álbum de Dylan. Ela o ouviu sem parar e concluiu que se não havia vivido na época de Rimbaud, pelo menos tivera o privilégio de viver na de Dylan.
Na noite de entrega do Nobel Patti escolheu sem pestanejar: interpretaria “A hard rain’s gonna fall”. A profecia de Dylan de que o temporal virá, para ela, continuava no ar.
Ora, na cerimônia do Nobel estão reunidos aqueles considerados os melhores entre os melhores em suas respectivas áreas. Super-humanos! Dylan jamais poderia ter estado de corpo presente entre os infalíveis. Sua ausência era o aviso do erro, da falha, do contra, da estrada. Do temporal!
Patti se emocionou durante a apresentação, errou e teve que recomeçar. E foi justamente esse erro que escancarou o aparato de poder da Academia (que hoje enxergamos claramente em crise após o escândalo de abuso) e foi capaz de dessacralizar a cerimônia e o seu significado. É no erro que está o novo, parecia dizer a performance. Se as descobertas e obras premiadas pelo Nobel ano após ano sinalizam com avanços para a humanidade, o trágico da vida parece sempre acompanhar de perto tais progressos. Nesse sentido podemos encontrar uma espécie de implosão (momentânea e simbólica) do edifício da razão ocidental (incluído aí o cânone literário) na noite em que Bob Dylan não estava lá, mas Patti sim. (Seria então a literatura um bicho estranho na Academia? Quando age politicamente ela deixa de ser suporte para conflitos para se tornar o próprio explosivo?)
Paradoxalmente é por meio da internet que nos unimos a Dylan e Patti na noite do Nobel contra a sociedade infalível e administrada pelos nerds brilhantes do Vale do Silício. O Vale que engoliu o conhecimento científico para transformá-lo em produtos que desaparecem por meio de slogans publicitários e depois voltam a aparecer como capital concentrado e ícones em telas de smartphones. A mesma Califórnia que sonhou com uma nova era repleta de paz, amor e flores, hoje abriga projetos de imortalidade que já anunciam a obsolescência do corpo humano. (Super-humanos ou pós-humanos?)
O Nobel de Dylan, salvo engano, com seus eventos imprevistos foi além dos debates que ocorrem hoje por trás dos muros dos departamentos literários da Ivy League. Pegamos com ele um atalho para desnudarmos as engrenagens do poder que mais constrange e molda a sociedade contemporânea, com sua forma aparentemente neutra, com a promessa ideologicamente oca dos aplicativos e a falsa liberdade de escolha dos consumidores conectados à rede.
Entre todas as formas artísticas, a literária é a que mais sofre para aparecer nas estradas virtuais de alta velocidade e fragmentação das redes sociais. Não procuro aqui desfazer o papel da literatura ou da crítica (e muito menos das lutas disparadas desse debate histórico e ainda pulsante), mas sim sugerir que a partir de uma escolha improvável que tentava rejuvenescer a imagem da Academia sueca, o campo literário teve que se mostrar plasticamente capaz de absorver a forma da canção de Dylan e escutar o que ela poderia nos contar sobre nossos tempos fraturados. O mistério da forma se revelava em uma nova implicação entre literatura e política.
Dylan foi garoto propaganda da Apple mais de uma vez. Se formos radicais com as armas da sociologia da cultura, sua entrada no Nobel seria apenas a confirmação do cânone aliado ao mercado, o rebaixamento definitivo da literatura. Se formos radicais com as armas da sociologia da cultura, muita coisa escapa. O que procurei foi o contraditório que brilhou por alguns minutos nesse evento Vesúvio, e de implicações ainda não totalmente compreendidas para o campo literário.
Patti Smith escreveu um artigo sobre a noite do Nobel publicado na New Yorker que termina assim: “Seventy years of moments, seventy years of being human” [“Setenta anos de instantes, setenta anos sendo humano”]. É um privilégio viver na mesma época que Dylan e Patti. Quando ela cantou-errou-iluminou a canção dele na noite do temporal, eu me senti parte de algo verdadeiro. E humano.