A escritora Hilda Hilst

A escritora Hilda Hilst

Ser ou não ser canônico

Literatura

11.09.18

Se essa não é a questão, é no mínimo um dos temas que tem orientado boa parte do campo literário brasileiro atual. Procuro neste espaço curto levantar algumas pistas – teóricas e históricas – com o intuito de alargar (e tensionar) o debate.

Simplificando: o que anteontem era a joia da cultura ocidental literária, hoje já não é mais; e o que ontem era marginal, hoje procura o seu lugar ao sol. Uma troca de sinais operada de forma assustadoramente rápida, o que sempre deve nos intrigar. A busca pelo não canônico, e a própria rejeição do canônico, é facilmente identificável nas curadorias de festivais, lançamentos editoriais, pautas dos cadernos de cultura e entre os objetos de pesquisa nos departamentos de letras.

Vale a pena seguir o bom conselho do historiador francês Marc Bloch e, uma vez encontrado o problema no presente, desenrolar a fita da história daqui pra lá.

Salvo engano, o processo todo começa nos Estados Unidos na virada da década de 1960 para a de 1970, e daí em diante. Na esteira dos movimentos pelos direitos civis, que se iniciam com a questão dos negros e em seguida aglutinam as de gênero, a luta invade as universidades e o campo cultural, que elege as ferramentas da sociologia da cultura como o meio mais eficaz de atacar certo caráter inefável dos objetos artísticos.

Mas antes de pensarmos na violência simbólica dos campus de Princeton ou Berkeley, é preciso ter em mente as cenas de conflitos reais travados nas ruas de cidades como Nova York e Detroit, que em alguns momentos ganharam contornos de guerra civil. A Guerra do Vietnã, travada do outro lado do mundo, rachava os Estados Unidos. Os confrontos no próprio país reforçaram as dúvidas da população norte-americana em relação ao prometido destino triunfante da “terra da liberdade” e “lar dos valentes”. O futuro era incerto e o presente injusto.

Já não era mais possível acreditar nos líderes do país, na união nacional contra o perigo do comunismo e nem tampouco na inocência da literatura. De objeto de contemplação, as letras se tornaram veículo privilegiado da difusão de ideologias repressoras, seja contra mulheres e negros, mas também com corte de classe. Se em um primeiro momento a busca era por corrigir injustiças de representação dentro dos departamentos e nas listas de autores estudados, a questão vai invadir a análise das obras em si e da própria linguagem. A era da inocência chegava ao fim. Nem é preciso falar que o uso das ferramentas duras da sociologia simplificaram as análises de muitas obras de autores canônicos que foram julgados sumariamente por tribunais anacrônicos (o tempo vai corrigindo esses excessos).

Não nos interessa aqui julgar os erros e acertos do movimento que na sua essência nasce de lutas justas e extremamente representativas dos dilemas do Ocidente pós-Segunda Guerra Mundial. A questão é entender as implicações de como esse debate chega ao Brasil, trinta anos depois, e de que forma podemos olhar de volta para ele de um local deslocado e por isso mesmo privilegiado.

Em artigo recente na Folha de S.Paulo, o crítico Alcir Pécora, após levantamento exaustivo da produção acadêmica sobre a escritora Hilda Hilst, apontou para o fato de que questões extra-literárias motivaram a atenção inédita despertada pela autora. Ainda segundo ele, isso levava a análises estranhas aos temas e preocupações estéticas de Hilda. O perigo dessa virada repentina de interesse é que a chave pudesse virar mais uma vez no futuro (por motivos imprevisíveis, já que descolados da obra) e a autora fosse largada uma vez mais ao esquecimento. Concorde ou não com o artigo, me parece que podemos ir além. De onde surgiria essa facilidade com que passamos a inverter os sinais de um autor ou de uma obra?

Me parece que aqui tocamos em um ponto sensível das culturas latino-americanas: o sentimento de seu caráter cultural postiço. Importamos teorias da mesma forma que importamos as últimas modas da sociedade de consumo e, também como esta, trocamos de teoria como quem muda de roupa, antes mesmo de levarmos em conta as implicações profundas dos necessários ajustes de uma teoria qualquer a uma outra realidade. Aqui chegamos ao ensaio “Nacional por subtração”, de Roberto Schwarz, que fecha o texto afirmando: “A ideia de cópia discutida aqui opõe o nacional ao estrangeiro e o original ao imitado, oposições que são irreais e não permitem ver a parte do estrangeiro no próprio, a parte do imitado no original, e também a parte original no imitado”.

As lutas pelos direitos dos negros e das mulheres não é uma ideia fora do lugar no Brasil, um país ainda extremamente, e estruturalmente, machista e racista. Mas a guerra do cânone chega até nós pela transmissão de ideias e não como elaboração direta do chão social. Ok, pouco importa. A luta é justa. É preciso ativar as consciências para que questionem as estruturas repressoras do país. Uma vereadora negra e de origem pobre foi fuzilada na cidade do Rio de Janeiro e apesar da enorme comoção o caso continua sem solução. A quantidade de estupros e homicídios sempre coloca a décima economia mundial (sim, o Brasil!) no topo das estatísticas. E é por tudo isso que é preciso ajustar o olhar para as teorias importadas. Ou, como sempre tem acontecido por aqui, em alguns anos deixaremos o debate atual de lado sem que a sua real potência como motor para o despertar de uma consciência mais refinada para a compreensão dos mecanismos de exclusão seja completamente compreendido. Ontem o desconstrucionismo, hoje o local de fala, amanhã, quem sabe… As teorias mudam e a afirmação do historiador britânico e marxista Eric Hobsbawm sobre o Brasil, não (única menção ao país no clássico sobre o século XX A era dos extremos): “um monumento à negligência social”.

Para encerrar, cabe mencionar os estudos recentes de João Cezar de Castro Rocha sobre as operações típicas de culturas não hegemônicas (para manter os termos do crítico) na produção da obra shakespeariana. O autor canônico por excelência era em seu tempo um marginal por excelência. Se por um lado é possível questionar autores canônicos buscando traços ideológicos em suas obras, talvez seja justo sermos generosos e investigarmos o que o próprio cânone soterrou de mais radical ao eleger certo autor para o seu panteão. Dessa forma podemos sim valorizar autores excluídos até aqui, recuperando obras centrais, como a da já mencionada Hilda Hilst, mas também com o mesmo arsenal teórico revalorizar autores canônicos incensados por motivos equivocados, ou no mínimo laterais. Sem isso, fica a dúvida: estamos de fato até aqui questionando as verdadeiras operações de canonização e suas consequências políticas e ideológicas, ou apenas criando e recriando novos cânones?

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