Quem é Josenildo?

Em processo

26.07.17

Depois de escrever Um defeito de cor, e um pouco intimidada pela repercussão que ele teve, comecei vários livros sem conseguir ir muito adiante. Escrever um policial, de ficção científica, voltado para o público juvenil, foi uma saída que encontrei para escapar da armadilha de “reescrever” o livro anterior, uma metaficção histórica. Quem é Josenildo? se passa em São Paulo, em 2064, depois que o estado se separa do Brasil e se torna um país independente. É a história de um garoto de 13 anos que simplesmente desaparece, deixando pistas que levam a três linhas de investigação: pode ter se suicidado (seguida pelos colegas), pode ter fugido de casa (seguida pela polícia), e pode ter sido sequestrado (seguida pelos pais). Durante as investigações, vão surgindo personalidades bastante distintas para o Josenildo que cada um achava que conhecia. Esta é uma primeira versão do texto, que pode sofrer modificações com as prováveis muitas reescritas que virão a partir da segunda etapa de pesquisa que estou começando a fazer.

 

“Quem é Josenildo?” era a pergunta que mais se ouvia pelos corredores e no pátio do colégio, com nome pronunciado sílaba por sílaba. O mais absurdo era que alguém com um nome daqueles fosse um de nós, colocando totalmente em segundo plano o que tinha acontecido. Algumas pessoas entram na justiça e conseguem mudar seus nomes, e talvez tenha sido o caso. Nome social, acho. Na lista de chamada, nas provas e no boletim, o que constava era José. José Galvão Pereira. Mas depois ficamos sabendo que o nome completo mesmo era Josenildo Galvão Pereira Terceiro. Minha mãe diz que não se deve rir de nomes ou defeitos físicos, mas era impossível não achar graça em uma ou outra brincadeira. E no fato de que não apenas um, mas três pares de pais, da mesma família, olharam para uma criança e acharam que ela tinha cara de Josenildo.

“Aquele negro do segundo período” era a resposta mais simples, por ele ser o único.

“O Pack? O nome dele era Josenildo?”

Interessante como naqueles dias todos já falavam dele no passado. Um desejo, talvez, de enterrar tudo junto: nome, lembranças, arrependimentos, culpas e medos. Principalmente nós, seus colegas de classe, que tínhamos colocado nele o apelido de Pack; que também não era só Pack, mas a parte pronunciável de Blackpack. Um trocadilho de backpack que, para nós queria dizer: “aquele negro que está sempre com a mochila nas costas”. E estava mesmo, pois sua mochila, se deixada sozinha na sala de aula, sofria mais vandalismo do que as estátuas do Largo do Arouche ou as paredes de banheiros públicos.

Era só isso que nos interessava saber sobre Josenildo, o Pack. Ninguém mais dizia black, mas o sentido estava sempre lá. E era essa a graça, a piada compartilhada, a força do apelido perfeito. Ou, como queríamos pensar, a nossa revanche. Porque nós o chamávamos de negro, que era o que o diferenciava de nós, mas ele não tinha como nos acusar. Mesmo porque estávamos certos de que só nos defendíamos do seu jeito prepotente, do seu ar superior, da sua necessidade de nos superar. Era culpa dele se o chamávamos de …Pack, se colocávamos banana sobre sua carteira, se aparecíamos com peruca de palha de aço, se deixávamos recados nas paredes do banheiro, se fazíamos colagens comparando sua família a macacos, se sentíamos vir dele os piores cheiros que tomavam conta da sala, se não o convidávamos para baladas ou grupos de estudo, se nos irritávamos com sua presença. Fazíamos tudo isso, e mais, porque ele tinha nos provocado antes. Josenildo nos ofendia com seu orgulho e nos desafiava com um ar de não vai ser ainda dessa vez que vou me rebaixar e reagir. Continuávamos porque percebíamos esse ainda, essa promessa de que, talvez, se nos superássemos, haveria alguam reação. Continuávamos porque, depois de tantos anos, não sabíamos como parar sem que ele achasse que tinha vencido. E ríamos nós mesmos das nossas black jokes. Por mais que fizéssemos, falássemos, xingássemos, brigássemos, ele apenas sorria, saía de perto, fingia não entender, apanhava calado, repunha o que estivesse faltando ou quebrado, refazia o que tinha sido desfeito, puxava conversa ou nos fazia favores como se nada tivesse acontecido.

Quando ouvimos falar do suicídio, passado o choque provocado pela ideia de que alguém da nossa idade, e que conhecíamos, estava morto, veio outro, muito mais forte: e se ele tivesse nos levado a sério? Não era pra ser só uma piada? Não consigo me lembrar de ninguém ali entre nós que, num momento de profunda irritação com Josenildo, não tivesse dito ou olhado para ele com olhos de se mata, cara!


No centro das atenções esteve Luana Almeida, filha de uma das coordenadoras.

“Ontem à noite, minha mãe não parava de perguntar sobre ele, e desconfiei que alguma coisa tinha acontecido. Eles fizeram várias reuniões aqui no colégio, no sábado e no domingo. Aí tem, né? Gente, vocês sabiam que o nome dele é Josenildo?”. Luana colocou a mão na frente da boca, escondendo com o gesto a vontade de rir, mas logo recuperou a seriedade que sua missão pedia. “É pra guardar segredo, viu?”.

Segredo, com certeza, não era o forte de Luana. Ela, Larissa Macedo e Dedeinha eram máquinas de falar, inseparáveis e não muito bem vistas pelo resto da turma. Acho que também não se suportavam, mas cada uma delas tinha medo de se afastar e as outras duas começarem a fofocar sobre ela também. Aquele assunto tinha todo o potencial para não ser segredo. Aliás, nem teve tempo de ser considerado como tal, por causa da velocidade com que se espalhou. Formávamos um grupo grande logo à entrada da nossa sala, chamando a atenção de todos que passavam pelo corredor, a caminho de suas aulas.

“Acho que a polícia esteve aqui também”, completou Luana, tentando se lembrar de cada detalhe obtido através da mãe. O que ela não tinha conseguido saber era como e onde.

“Mas se foi suicídio, estão investigando o quê?”, perguntou Daniel Duarte, um dos que mais se incomodava com Josenildo. Era filho de um juiz importante que também tinha estudado no colégio. Diziam que o pai já o tinha livrado de pelo menos uma apreensão por porte de drogas. Ou por dirigir sem carteira, não tenho certeza. “A menos que….”

“A menos que o que, cara? Se o idiota cortou os pulsos…”, interrompeu Papai, que estava sempre junto com Daniel. Tinha esse apelido por ser o mais velho da turma, tendo repetido de ano três vezes. Os dois, mais o Júlio e um garoto de outra classe tinham uma banda. Os ensaios eram feitos na casa de Papai, que morava com a irmã um pouco mais velha em uma casa enorme no Jardim Europa. A mãe tinha falecido de câncer há uns quatro ou cinco anos, e o pai era um executivo que estava sempre viajando para fora do país.

“Eu não falei que ele cortou os pulsos”, Luana se apressou em esclarecer.

“Tá, mas você acha que o cara ia se matar como? Enfiar uma revolver na boca e atirar?”. Papai fez o gesto ilustrativo, que nenhum de nós conseguiu enxergar Josenildo fazendo. “O cara era um… puff! Que ele não me ouça, de onde estiver. Pode tá morto, mas era um banana.”

Nope! Por isso eu ia falar que, se a polícia veio aqui, pode ter alguma coisa a ver com o colégio. Alguém viu se tem alguma parte isolada? Já pensou se ele fosse um homem-bomba?”

A ideia de Daniel nos fez rir. E o próximo comentário dele me fez correr para o banheiro, apavorada com a possibilidade de ter que explicar porque aquela mochila estava comigo: “Vocês têm ideia do que o Pack carregava na backpack?”


O que havia naquela mochila tinha sido minha fixação durante todo o final de semana. Desde que nos mudamos pra cá, e por causa do que aconteceu Na Outra Cidade, nunca volto sozinha para casa. Nos dias em que tenho período integral, espero pela minha mãe, que sai do trabalho por volta das seis horas da tarde. Quando tenho apenas meio período, é o meu irmão quem me pega e me deixa em casa, na folga de tempo entre a faculdade, que ele faz de manhã, e o estágio, na parte da tarde. Era esse o caso naquela sexta-feira, com a diferença de que eu não estava indo para casa, mas para o escritório de advocacia onde minha mãe trabalhava como assistente de alguma coisa.

Também influenciada pelo acontecido Na Outra Cidade, minha mãe tinha decidido voltar a estudar, e fazia Direito, à noite. Ela estava no terceiro período e adorava comentar que, dentro de menos de dois anos, seríamos colegas de curso. Eu esperava que, antes disso, acumulasse coragem suficiente para dizer que não tinha a menor vontade de ser advogada. Mas como também não tinha a menor ideia do que queria ser, entrava na dela e ganhava tempo. Ela tinha conseguido para mim uma entrevista com sua chefe, para um trabalho de vocação profissional. No mês anterior tínhamos feito uma lista das expectativas em relação à profissão que queríamos seguir, e tínhamos que entrevistar um profissional e comparar essas expectativas com a realidade do dia-a-dia. Os testes diziam que eu levava jeito, mas não sei. Tenho medo de que, em mim, a vontade de vingança seja maior que a de justiça.

Eu pensava nisso enquanto esperava pelo Murilo em frente ao Shopping perto do colégio, e tentava adivinhar a profissão das pessoas que passavam por ali. O movimento era grande, por causa do horário de almoço, e eu tinha que analisar as pessoas em blocos. Abandonei um grupo colorido de publicitários quando ouvi uma freada de carro, acompanhada da buzina e dos palavrões característicos. A gente sempre olha quando isso acontece, e primeiro achei que fosse um assalto, com o ladrão correndo pelo meio da avenida, fugindo da polícia ou do assaltado. Acho que nem tive tempo de reagir ao instinto de me esconder dentro do Shopping, pois logo reconheci a calça de uniforme do colégio. Era o Josenildo. Ele parou de correr quando me viu, e de andar na minha direção quando percebeu que eu dava alguns passos pra trás, assustada ou surpresa. Antes de falar comigo, olhou muito para os lados, como se estivesse procurando por alguém. Aliás, tive a impressão de que ele estava correndo mais por estar atrasado, e não fugindo, como pensei inicialmente.

“Alguém vem te buscar?”, perguntou, em meio ao fôlego curto. Não era um tipo atlético. Tanto que tinha conseguido dispensa da educação física, alegando algum problema de saúde.

Eu também olhei pros lados, antes de responder. Não queria que nos vissem juntos, e só pensava em dispensá-lo logo, com medo de que pedisse carona. Sabia que morávamos em bairros vizinhos.

“Meu irmão, mas nós vamos pra outro…”

Ele me interrompeu e sorriu, sabendo onde eu queria chegar. “Não, eu não vou pra casa. Só queria que você guardasse uma coisa para mim, por favor”.

Eu balancei a cabeça dizendo que sim, quase sem pensar, querendo apenas que fosse rápido, que nenhum conhecido nos visse e que meu irmão não chegasse, porque não sei o que ele faria se me pegasse conversando com o Josenildo. Ele também tinha saído bastante transformado Da Outra Cidade.

“Não conta pra ninguém, tá? E entrega só pra mim. Por favor.”

Estranhei, porque Josenildo nunca dizia “por favor”. Fazia questão de nos irritar com sua pronúncia correta, seu desconhecimento de gírias e palavrões, seu vocabulário de velho, seus ‘por obséquio’, ‘até mais ver’, ‘agradecido’. Houve, inclusive, um famoso discurso no dia em que alguém zoou com ele por causa do “agradecido”. Ele disse que não se sentia obrigado nunca, querendo dizer que não se sentia na obrigação de agradecer por nada. Caso contrário, estaria sendo falso, e que quando queria agradecer, ‘agradecido’ era a palavra certa para descrever seu estado de espírito. Durante um bom tempo, quando ouvíamos um ‘obrigado’ de alguém, sempre perguntávamos se a pessoa estava sendo falsa ou verdadeira. E ríamos mais ainda quando o Josenildo estava por perto e perguntava, levando-se muito a sério, como sempre se levava: “Aprenderam, né?”.

Perdi a chance da trollada do ano, mas não pensei rápido o suficiente para perguntar se, naquele momento, ele estava sendo falso ou verdadeiro. Antes mesmo que eu pudesse pensar em algo para responder, ou perguntar, ele já estava se afastando, de costas, murmurando o ‘obrigado’ e se misturado a uma turma que entrava para o Shopping. Engenheiros, acho.

Enxergando à distância de quase três anos, hoje percebo que não era uma questão de falso ou verdadeiro. Ele apenas queria desviar a minha atenção. Porque não percebi que, ali, na minha frente, ele se despia do apelido e de seu significado, tanto para ele quanto para nós. O Black sem a pack. Eu ainda não tinha entendido o que ele queria que eu guardasse, e só percebi a mochila quando quase tropecei nela, caminhando em direção ao carro do Murilo. Pensei em deixá-la ali, no chão, onde Josenildo a tinha colocado, sem eu ver. Mas não tive coragem.

“Mochila nova, malinha?”, perguntou meu irmão, quando me sentei ao lado dele e me apressei em jogar a mochila no banco de trás. Ele costumava me chamar de mala, quando tinha que me levar de um lado pra outro.

“Uma amiga pediu pra eu guardar pra ela. Posso deixar no seu carro até de noite?”.

Ele respondeu com um gesto de ombros, como se quisesse dizer que para ele tanto fazia. “A mãe falou pra eu te dar alguma coisa de comer antes de te deixar lá. Tá com fome de que?”

Era uma pergunta desnecessária, quase uma piada. Comeríamos “um japonês”, como sempre. Nem sei se gostávamos tanto, mas tínhamos o hábito de gostar de coisas que não encontrávamos no lugar de onde viemos.

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