Quando, há dez anos, conheci a escritora Conceição Evaristo numa conferência na UFSC, ela me surpreendeu em muitos aspectos. O principal, que houvesse uma autora de tantas obras publicadas, com tamanha densidade, sem nenhum reconhecimento público. Poucas semanas depois da palestra em Florianópolis estive no seu apartamento, no bairro carioca do Rio Comprido, para uma entrevista. No espaço de tempo entre os dois encontros, descobri que parte do seu anonimato dizia respeito ao fato de que a crítica não a considerava uma autora de talento, mas alguém cuja obra era elogiada apenas em função de ser identificada com a militância no movimento negro.
De fato, a septuagenária que será uma das estrelas desta edição da Flip é negra, aprendeu a ler para conferir o rol de roupas lavadas pela mãe, na Belo Horizonte dos anos 1950, e tem seus livros publicados pela Mazza, editora engajada na literatura de autores e autoras negras. Parte de sua obra foi lançada nos Cadernos Negros, também dedicados a dar visibilidade à produção afroliterária. Após todos os desafios que enfrentou na vida – desde escapar do destino de empregada doméstica até defender um doutorado em Letras na UFF, em 2011, foram muitos – , Conceição Evaristo estará diante de imensos dilemas em Paraty. A mulher de zelador, que escreveu Becos da memória em 1988, encara o impasse enfrentado pelas lutas identitárias: ser reconhecida como uma grande escritora negra, e com isso ficar confinada à marcação de negritude, ou ser recebida como uma grande escritora, e com isso enfraquecer sua posição de mulher negra.
Na segunda edição da Flip, a espanhola Rosa Montero foi convidada a integrar uma mesa sobre literatura feminina, pensada como uma homenagem a grandes escritoras mulheres. Rosa aceitou o convite e atravessou o Atlântico para negar sua posição de escritora de “literatura feminina”. Aspirar o lugar universal – e assim escapar da limitação identitária – é um desafio que acompanha os movimentos feministas pelo menos desde a França revolucionária do século XVIII. O impasse entre particular e universal, ou sobre quem tem direito a ingressar na categoria universal, portanto, não é exclusividade de Conceição Evaristo.
Segundo a curadora da 15a edição da Flip, Josélia Aguiar, a programação deste ano atende a demandas de movimentos de mulheres e de movimentos negros, embora já estivesse sendo concebida com a intenção de retirar da festa de Paraty um certo caráter elitista do qual é acusada desde a primeira edição. Num país de 200 milhões de habitantes em que a venda total de livros em 2016 foi de 3,5 milhões de exemplares, tudo que diz respeito à literatura soa elitista, o que torna ocioso o debate sobre o caráter privilegiado da Flip, seja dos seus convidados, seja do público. Mesmo as inúmeras iniciativas de popularizar a festa literária – a mais importante delas, a transmissão ao vivo das mesas em Paraty e pela internet – sempre poderão ser acusadas de insuficientes. É um problema inerente ao acesso à literatura, não do acesso à festa.
Neste aspecto, Conceição Evaristo é símbolo de todas as dificuldades que o mercado editorial oferece. Seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, saiu em 2003 da gaveta onde dormiu por muitos anos porque a escritora juntou suas economias para fazer a primeira edição. E o mercado editorial, embora não ofereça espaço para autores que não reconhece, tampouco perdoa os que se autopublicam. Há dez anos, quando nos conhecemos, ela tinha orgulho da sua biblioteca – acomodada no quarto de empregada do apartamento onde morava – e da sua trajetória, que então incluía dois romances e dois livros de poesia. Felizmente, apesar de todas as suas vitórias, Conceição Evaristo terminou a nossa conversa de dez anos atrás me dizendo “ainda está pouco”. Por mais que se faça para reconhecê-la, sempre será pouco para reparar todo o racismo, o machismo e a discriminação sofridas pelas mulheres negras neste país.