Chico Albuquerque/ Convênio Museu da Imagem e do Som - SP/ Acervo IMS

Hilda Hilst. Foto de Eduardo Simões

Hilda Hilst. Foto de Eduardo Simões

Era Hilda Hilst feminista?

Literatura

16.07.18

Antes de responder a pergunta que dá título a esse artigo – inspirada por uma mesa de debates proposta pela curadora da Flip, Josélia Aguiar – talvez fosse preciso perguntar o que é ser feminista, quem diz e quem autoriza alguém a se dizer feminista. A escritora Hilda Hilst nasceu em 1930, foi contemporânea de escritoras como Lygia Fagundes Telles, e de feministas importantes, como Danda Prado, da editora Brasiliense, da socióloga Heleieth Safiotti – cuja obra sociológica foi fundamental para o desenvolvimento de um pensamento feminista no Brasil – e de Rose Marie Muraro, que fez história no feminismo brasileiro do século XX como escritora e editora de autoras internacionais decisivas na nossa formação. Como muitas dessas mulheres, Hilda foi rebelde em relação aos papéis de gênero que esperavam dela e transformou essa rebeldia em obra poética e filosófica. Fazer em 2018 uma Flip para Hilda, cujo primeiro livro foi publicado em 1950, mas cujo reconhecimento da obra é sempre póstumo, é uma forma de afirmar o quanto ela ainda é uma pensadora intempestiva e contemporânea.

Hilda talvez tenha sido feminista antes de o feminismo se estabelecer como militância política, antes mesmo de o termo feminismo vir a designar essa ampla gama de reivindicações de direitos das mulheres sobre seus corpos, seus sexos, suas vidas, seus amores e seus trabalhos, que sempre foram explorados nas mulheres pobres, negras e escravas, e proibidos para as mulheres ricas, brancas e mesmo assim oprimidas naquilo que então se chamava de condição feminina. As feministas da geração anterior a de Hilda haviam sido chamadas de sufragistas e, no rastro dos movimentos internacionais, conquistaram o direito a voto em 1937. As feministas que vieram na geração subsequente a de Hilda foram protagonistas da chamada segunda onda feminista, que começa no início dos anos 1970, ecoando os movimentos de Maio de 1968 na Europa, e forma o chamado campo de estudos de gênero a partir daí. A  geração de Hilda ficou imprensada, quase esquecida, mas é formada, no Brasil, principalmente por escritoras e intelectuais que, no rastro do Movimento Modernista de 1922, tomam como óbvio aquilo que na verdade era ainda muito estranho: que mulheres ocupassem o espaço público e, sobretudo, o lugar do pensamento, da arte e da escrita.

Nesse sentido, um dos obstáculos entre a obra de Hilda e seus leitores vem da sua total recusa à fazer “literatura feminina” e, ao mesmo tempo, uma total recusa do mercado editorial em admitir que uma mulher naquele momento fizesse literatura universal, sem nenhum outro adjetivo. Esse problema não é pouco importante nem no campo da literatura nem o campo do feminismo. O momento feminista das mulheres de Letras do Brasil da primeira metade do século XX foi fundamental para abrir caminhos para as mulheres que viriam a seguir. Inclui de Clarice Lispector à editora Carmen da Silva, passando pela ativa professora de teoria literária Heloisa Buarque de Hollanda, com um atual e importante trabalho de formação de jovens feministas. Hilda, portanto, não estava sozinha, embora em um certo momento tenha se recolhido a uma vida solitária no interior de São Paulo, dedicada à escrita e ao mesmo tempo recusando os salões nobres do mercado literário. Como ela mesma explica numa entrevista: “Porque ou eu fico fazendo esse puta charme dia e noite, andando pelas ruas, falando nas universidades que eu sou caralhal, ou eu escrevo. Qual é o meu negócio? É escrever. E escrever sobre o que eu acredito, eu estou absolutamente preocupada com todo tipo de emoções. Com a alma.”

Hilda Hilst. Foto de Eduardo Simões

Essa dupla recusa – a da literatura feminina e a da concessão ao mercado editorial –  fez dela uma escritora ainda mais solitária. Ela já era uma mulher que reivindicava a liberdade antes mesmo do que viria depois a ser chamado de feminismo. A mim toca em particular sua rebeldia em relação ao mercado editorial, exigindo visibilidade da escritora que se ressentia de não ser reconhecida apenas pela sua escrita. Mulheres escritoras eram atraentes justamente por serem mulheres, em geral tendo que responder àquelas perguntas tolas do tipo “como você faz para conciliar sua vida pessoal e profissional?”, para a qual Hilda soltaria um belo palavrão.

Acho que hoje ela gostaria de ser reconhecida como feminista, nem que fosse para perguntar, naquele tom entre o irônico e deboche, porque um escritor recluso é um gênio criando e uma mulher reclusa é uma louca incompreensível? A escritora paulista nasceu um ano depois de Virginia Woolf escrever o ensaio “Um teto todo seu”, onde diz a famosa frase: “Uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu se ela quiser escrever ficção”. Nenhuma das duas coisas – dinheiro e teto – eram esperadas que as mulheres tivessem de modo independente, e mesmo tendo sido privilegiada nisso, Hilda talvez tenha sido amaldiçoada por ter conseguido escrever ali mesmo onde só se esperava que houvesse interdição. Nesse ponto, poderia voltar para a pergunta inicial – era Hilda Hilst feminista? – para concluir com a frase dela que dá título ao livro de entrevistas organizado por Cristiano Diniz: “Fico besta quando me entendem”. Hilda, que queria ser lida sem ter que explicar o seu trabalho, deve estar besta com uma Flip inteira explicando a sua obra, e quem sabe feliz por ser enfim lida.

 

MAIS

Edição dos Cadernos de Literatura Brasileira dedicada a Hilda Hilst 

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