O diretor Eduardo Nunes

O diretor Eduardo Nunes

Dos seres imaginários

No cinema

17.08.18

Há filmes que vemos “de fora”, como se fossem ilustrações de histórias que poderiam ser narradas verbalmente. E há filmes que se apresentam como objetos a ser apreendidos mais pelos sentidos do que propriamente pelo intelecto. Uma experiência sensorial desse tipo, próxima da imersão, é oferecida por Unicórnio, segundo longa-metragem do carioca Eduardo Nunes (o primeiro foi Sudoeste, de 2011).

 

 

O mergulho do espectador é facilitado pela extrema horizontalidade da imagem: uma janela de 1:3,66, pouco usual no cinema comercial. Somam-se a isso os planos longos, em que os sutis movimento de câmera promovem um reenquadramento permanente da cena, como numa lentíssima versão do recurso do Google view.

Dito isso, trata-se de um dos filmes plasticamente mais impressionantes dos últimos tempos. Inspirado em dois contos de Hilda Hilst (“O unicórnio” e “Matamoros”), O unicórnio parece menos preocupado em contar uma história do que em criar atmosferas, expressar sensações, transmitir estados de alma através da luz e da matéria: árvores, terra, pedras, água, objetos domésticos, corpos.

Há uma situação narrativa singela, básica como uma parábola bíblica. Maria, uma menina de 13 anos (Bárbara Luz) vive sozinha com a mãe (Patricia Pillar) numa casa isolada de montanha, tendo como único vizinho um solitário criador de cabras (Lee Taylor). De início, mãe e filha só encontram eventualmente o vizinho no poço de uso comum. Depois se aproximam, ele passa a frequentar a casa, a menina se inquieta com essa perturbação, que coincide com sua entrada na adolescência.

Esse fio de história é entrecortado por conversas entre Maria e seu pai (Zécarlos Machado), diante de uma parede branca de azulejos, evidentemente num hospício. A conversa da menina não é uma narração da sua vida, mas uma outra coisa, uma espécie de recriação da experiência por meio da fantasia. O filme se desenvolve nesse espaço incerto entre o real e a invenção, onde há espaço para um unicórnio e uma árvore de frutos venenosos.

 

História sem tempo

No polo rural da narrativa, não há nenhum signo de modernidade, nada que permita situar a ação em algum período histórico específico ou lugar geograficamente determinado. Em princípio poderia ser uma história acontecida em qualquer tempo e local, como convém às parábolas e aos contos de fadas.

Liberto da urgência social que marca boa parte da produção brasileira recente, Eduardo Nunes pode se entregar sem constrangimento a sua exploração estético-sensorial, servindo-se da formidável direção de fotografia de Mauro Pinheiro Jr. São notáveis as cenas em que se combinam o ambiente interno da casa e a paisagem ao longe, o foco nítido nos objetos que estão em primeiríssimo plano e a indefinição que transforma o fundo quase em pinturas abstratas, impressão acentuada pelas cores trabalhadas eletronicamente.

“Queríamos uma cor que remetesse aos antigos filmes coloridos em technicolor”, disse o cineasta numa entrevista. A meu ver, entretanto, a plasticidade do filme faz lembrar o cinema de Tarkóvski, de Sokurov e de Béla Tarr, ainda que sem a densidade metafísica desses mestres. Por ser narrado do ponto de vista de uma menina que se defronta com o despertar da sexualidade através da relação com os elementos da natureza, Unicórnio tem pontos de contato com o igualmente belo A ostra e o vento, de Walter Lima Jr.

É dessa estirpe nobre que faz parte o filme de Eduardo Nunes, que tem também o mérito de revelar, em meio a um ótimo elenco adulto, o talento da encantadora estreante Bárbara Luz. Com seu rosto “antigo” e seu olhar intenso, ela realça o tom pictórico e atemporal do filme, quase como se um quadro de Vermeer ganhasse vida na serra de Teresópolis, onde o filme foi rodado.

 

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