O cineasta Joaquim Pedro de Andrade

O cineasta Joaquim Pedro de Andrade

Eu vi um Brasil no cinema

No cinema

06.09.18

A filmografia de Joaquim Pedro de Andrade (1932-88), que será exibida na íntegra a partir desta quinta-feira (6 de setembro) no IMS Paulista,  é talvez a ponte mais completa e consequente entre o modernismo literário dos anos 1920 e o cinema moderno.

Relativamente pouco numerosos (seis longas e oito curtas em mais de duas décadas de carreira), os filmes de Joaquim Pedro atualizam de modo crítico e inventivo a investigação sobre a identidade brasileira empreendida pelos modernistas da “fase heroica”. Nesse processo, paralelo ao teatro de Zé Celso e ao tropicalismo de Caetano e Gil, o diretor de Macunaíma de certa forma canibaliza o que já era canibalização (da cultura europeia), praticando uma antropofagia da antropofagia, desta vez mediante a inserção dos temas modernistas no contexto da cultura pop, do mercado de consumo e da revolução comportamental.

Ninguém estava mais habilitado e até “legitimado” do que ele para realizar a tarefa. Filho do escritor e jornalista mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, que tinha sido amigo de Mário de Andrade e fundador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Joaquim Pedro cresceu no convívio com figuras como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Bandeira, aliás, foi tema e protagonista de um de seus primeiros curtas, O poeta do Castelo (1959), e um poema de Drummond inspirou seu primeiro longa de ficção, O padre e a moça (1965).

 

Diálogo com o modernismo

O ponto mais alto desse diálogo com a tradição modernista é, evidentemente, Macunaíma (1969), filme de uma exuberância criativa espantosa, sobretudo se lembrarmos que foi realizado na fase mais negra da ditadura militar, depois da edição do AI-5. Cutucando a onça com vara curta, Joaquim Pedro fez da icamiaba Ci, a amada do herói sem caráter, uma guerrilheira urbana: vivida na tela por Dina Sfat, é uma das mais belas personagens femininas de todo o cinema brasileiro.

À ousadia política, unia-se a ousadia estética. Vibrando com o contraste extravagante de cores, com a câmera aberta aos acidentes da natureza e da metrópole, com uma trilha sonora que vai de Angela Maria a Wilson Simonal, passando por Roberto Carlos e marchas militares, com um humor chanchadesco e uma profusão de signos do consumo, o filme faz da feiura nossa beleza constituinte. É a expressão máxima da estética tropicalista, se é que existe uma.

A escolha do elenco não poderia ser mais acertada. A escritora Noemi Jaffe chegou a brincar que Mário de Andrade escreveu Macunaíma em 1928 para que o herói fosse encarnado quatro décadas depois por Grande Otelo. Inversamente, podemos dizer que o ator nasceu para viver esse papel: sua atuação é um assombro. Também o Macunaíma branco encontra um intérprete à altura, Paulo José. Impossível imaginar outro em seu lugar. Há ainda um Jardel Filho impagável e irreconhecível como o gigante Venceslau Pietro Pietra.

Obra-prima absoluta, Macunaíma contrasta na aparência com o longa anterior do diretor, o igualmente admirável O padre e a moça, filmado em preto e branco no vilarejo de São Gonçalo do Rio das Pedras, nas profundezas das Minas Gerais. Ali, em meio ao silêncio das montanhas rochosas e aos sussurros dos aldeões, desenrola-se o “negro amor de rendas brancas” evocado no poema de Drummond, entre uma jovem casada (Helena Ignez) e o pároco local (Paulo José). Numa visão retrospectiva, é como se esse mergulho no Brasil católico e provinciano tivesse sido necessário para o salto tropicalista posterior.

O que unifica toda a filmografia de Joaquim Pedro é essa indagação do homem brasileiro em suas múltiplas faces, em sua miscigenada formação, em sua cultura híbrida e cambiante. Essa preocupação aparece não apenas em seus longas de ficção, mas também em documentários como Garrincha, alegria do povo (1963) e O Aleijadinho (1978). No fundo, é como se o cineasta repusesse em novas bases as questões dos modernistas: quem somos nós? Que cultura é a nossa? Como nos relacionamos com o resto do mundo?

 

O espírito e a letra

Essa busca tem como bússola, sempre, a literatura. Mesmo o drama histórico Os inconfidentes (1972), acerto de contas com o nascimento da ideia de um Brasil soberano (mas que Brasil seria esse?), tem em sua base, além dos autos da devassa, o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, sem contar a obra poética dos próprios inconfidentes.

Mas não se trata nunca de literatura ilustrada por imagens vicárias. O desafio de Joaquim Pedro, quase sempre vencido a contento, era o de buscar a expressão audiovisual que dialogasse criativamente com a palavra escrita, que fosse fiel ao espírito e não necessariamente à letra.

Quando estava realizando Macunaíma, o diretor disse ter-se dado conta de que Oswald de Andrade “era muito aquele herói sem nenhum caráter que eu estava filmando, era muito o Macunaíma”. Nasceu ali a ideia de se debruçar sobre a vida e a obra do autor de O rei da vela, que era o oposto complementar de Mário de Andrade no modernismo paulista. Dessa centelha surgiria o último filme de Joaquim Pedro, O homem do pau-brasil (1981).

Objeto estranho, de uma liberdade narrativa notável, o filme alinhava de modo alegórico, e nem sempre feliz, episódios da biografia, da obra e da atuação pública de Oswald. A chave da fantasia extravagante e da total despreocupação com o realismo ou a verossimilhança, acionada em Macunaíma, volta a reinar. Também aqui o protagonista é vivido por uma dupla de atores, Flávio Galvão e Ítala Nandi, Oswald-macho e Oswald fêmea, “buscando uma síntese interna, antropofágica, do herói”, nas palavras do cineasta. A utopia oswaldiana do matriarcado de Pindorama antecipando muito das discussões atuais sobre protagonismo feminino, papéis de gênero, identidades sexuais.

Uma experiência curiosa é rever hoje o filme em cotejo com trabalhos na mesma linha de releitura criativa da tradição modernista realizados por Julio Bressane, em especial Tabu e Miramar, nos quais Oswald figura com destaque. A presença, no elenco de O homem do pau-brasil, de um ator icônico do chamado “cinema marginal” como Guará Rodrigues reforça a aproximação entre as obras de diretores tão díspares.

Assim como a prospecção mineral-provinciana de O padre e a moça parece ter sido necessária para a subsequente explosão de Macunaíma, também o épico-alegórico O homem do pau-brasil foi antecedido por uma exploração mais íntima, microscópica, de realidades domésticas, mesquinhas, “menores”: a amarga comédia de costumes Guerra conjugal (1975), que costura de modo hábil dezesseis contos do paranaense Dalton Trevisan. São histórias ao mesmo tempo cômicas e cruéis, que o cineasta qualificou certeiramente de “crônicas de psicopatologia amorosa na civilização de terno e gravata”.

 

O íntimo e o épico

É nesse movimento pendular entre o minúsculo e o grandioso, o íntimo e o épico, que Joaquim Pedro forjou uma obra cinematográfica singular, fecunda e potente como poucas. Impossível pensar o Brasil e sua cultura sem passar por ela.

A morte prematura impediu o diretor de realizar dois de seus projetos mais ambiciosos, O imponderável Bento contra o crioulo voador, sátira realista-fantástica sobre um homem santo que levita sobre Brasília em plena ditadura militar, e um adaptação de Casa grande e senzala. O roteiro de O imponderável Bento está sendo lançado em livro pela editora Todavia. A adaptação do clássico de Gilberto Freyre, personagem retratado em seu primeiro curta (O mestre de Apipucos, 1959), teria sido um fecho perfeito para a filmografia de Joaquim Pedro, esse filho da casa grande que escolheu ficar do lado da senzala.D

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