Torquato Neto (1944-1972)

Torquato Neto (1944-1972)

A sina do menino infeliz

No cinema

09.03.18

Por uma triste coincidência, o documentário Torquato Neto – Todas as horas do fim chegou aos cinemas no dia em que a comunidade literária brasileira era abalada pela notícia da morte precoce e inesperada de outro jovem poeta e escritor, o carioca Victor Heringer. Assim como Torquato (1944-72), artista multimídia avant la lettre (poeta, compositor, cronista, ator, cineasta), também Heringer experimentou várias linguagens e “suportes” para a sua arte: poesia, romance, foto, vídeo, internet.

Torquato se matou um dia depois de completar 28 anos. Victor se foi aos 29. As semelhanças terminam aí. Como mostra o documentário de Eduardo Ades e Marcus Fernando, o poeta piauiense tinha a morte inscrita desde o início em sua vida e em sua arte. Não por acaso, uma de suas mais belas letras, “Todo dia é dia D”, começa dizendo: “Desde que saí de casa/ trouxe a viagem de volta/ gravada na minha mão,/ enterrada no umbigo,/ dentro e fora assim comigo,/ minha própria condução”.

A sombra da morte

Ainda que, perto do final do documentário, um amigo diga que não lê a vida de Torquato a partir da sua morte, e que o suicídio não estava embutido fatalmente em cada um de seus passos, é difícil escapar dessa impressão, e é em torno dela que o filme trabalha a sua construção narrativa. Não como uma teleologia – isto é, como progressão rumo a um fim dado de antemão –, mas antes como uma espiral, em que os vários lances da intensa e acidentada vida do artista passam em algum momento pela sombra ameaçadora da morte.

Não foi uma vida comum, não foi uma arte pequena. O risco de um documentário como esse é sucumbir ao excesso de informação, de iconografia, de depoimentos laudatórios, de mitificação. Outro perigo é o das interpretações redutoras: psicanalíticas, políticas, sociológicas, biográficas.

Os diretores do documentário, a meu ver, buscaram resolver esse impasse assumindo como norte uma tensão que parece central à vida e à arte de Torquato. De um lado, a abertura para o mundo: a migração para Salvador e para o Rio, a participação ativa na Tropicália, a temporada em Londres e Paris, as artes plásticas, o jornalismo, o cinema, a revolução comportamental, a imersão, enfim, na geleia geral daqueles tempos convulsos. De outro, um eterno retorno às origens: a mãe, a rua da infância, a palma da mão, o umbigo.

A primeira imagem é a do poema manuscrito do qual foi extraído o título do filme, lido em off com dicção e entonação perfeitas pelo ator Jesuíta Barbosa: “Sou como sou,/ vidente./ E vivo tranquilamente/ todas as horas do fim”. Esse procedimento se repetirá em vários momentos: poema com a caligrafia de Torquato e a voz de Jesuíta.

É a única situação de redundância – evidentemente deliberada – entre som e imagem. Em todo o restante do documentário, essa relação é frequentemente de descompasso, fricção, entrechoque, potencializando o sentido, estimulando associações de ideias e emoções. Um procedimento poético, em suma, análogo ao adotado por Lirio Ferreira e Hilton Lacerda em Cartola – Música para os olhos (2007).

Assim, um depoimento de Gilberto Gil sobre a característica de Torquato como menino franzino, herdeiro da “severinidade” do sertão nordestino, é acompanhado de imagens de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos. Versos do poeta sobre o próprio nascimento são seguidos pela célebre cena de Macunaíma (Grande Otelo) despencando no chão entre as pernas da mãe (Paulo José) no clássico de Joaquim Pedro de Andrade.

Presente e passado

Os próprios depoimentos dos entrevistados (Caetano, Gil, Tom Zé, Augusto de Campos, Ivan Cardoso e um enorme etc. que inclui um surpreendente Moreira Franco, amigo de infância do biografado) escapam das rotineiras talking heads dos documentários convencionais e televisivos. As falas são deslocadas dos seus emissores, sobrepondo-se sempre a outras imagens. E a maneira como os entrevistados são filmados, em sua textura granulada, riscada e com cores desbotadas, mimetiza os velhos filmes domésticos e os super-8 que Torquato tanto amava. O presente é captado como se já fosse passado, numa forma de enfatizar o trabalho implacável do tempo.

O ritmo do filme parece obedecer também às pulsões do próprio biografado, variando sutilmente entre a agitação e a melancolia. Quando se fala do período mais alvoroçado do tropicalismo, predomina uma colagem quase caleidoscópica de elementos díspares, totalmente afim ao espírito do movimento. Em passagens mais intimistas, a câmera passeia pausadamente por fotos em preto e branco de Torquato e seus próximos.

O que anima o documentário e o impede de ficar frouxo ou desinteressante sequer por um minuto são esses movimentos de sístole e diástole entre a abertura para o mundo e o mergulho interior, entre o íntimo e o universal, poesia e história, violência e ternura. Tudo isso, de alguma maneira, estava inscrito no próprio Torquato. O trabalho dos cineastas foi explorar esse tesouro artístico e humano e tentar replicá-lo por outros meios, num diálogo ao mesmo tempo respeitoso e altivo. Uma conversa de amor, nem mais nem menos.

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