Rastros dos trópicos

Música

16.10.12

Tom Zé, no filme Tropicália (Divulgação)

1. Prólogo ? Não se pode negligenciar um aspecto geral e inegável do fenômeno tropicalista, de certa forma reavivado pelo lançamento do documentário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado, e por Tropicália lixo lógico, novo álbum de Tom Zé. Está certo dizer que, com a força de um sobressalto, serviu de epílogo para um país que ficou para trás, mas que de certa forma continuou nos habitando. Se podemos atribuir a Euclides da Cunha, Sérgio Buarque e Josué de Castro a disseminação de uma percepção aguda da miséria brasileira, tornando incontornável a questão da formação, o tropicalismo exibiu, para o chamado grande público, e não raro sob a forma de um produto pop, a consciência aguda do conteúdo trágico de uma cultura ? trágico aqui no sentido nietzschiano, isto é, como uma forma de vida e pensamento depositada sobre a instabilidade, passível de acolher tanto o prazer como a dor, a criação e a destruição, vida e morte em eterna transfiguração. De maneira semelhante ao presente contemporâneo, texturizado pelas tonalidades do passado e do futuro, alguns setores da inteligência e do público de classe média passaram a enxergar a realidade brasileira permeada por conflitos. Em substituição à luta do bem contra o mal, do original contra a cópia, do nacional contra o estrangeiro, a Tropicália expôs e provocou fluxos, confluências, adesões, dissensos, mais ou menos guiados por uma dinâmica político-criativa que se renova a cada dia. Defesa de tese no programa do Chacrinha, festa funk na Igreja da Penha, carnaval na obra, batuque na cozinha e na sala de jantar, pouco importa o que sinhá queira?

2. Identidade dinâmica ? Em sua vertiginosa empreitada crítico-poética chamada Tropicália lixo lógico, Tom Zé afirma que a Tropicália nos tirou da “era medieval”, e que com o surgimento de Gil e Caetano o Brasil teria finalmente ingressado na segunda revolução industrial. Não se trata apenas de uma ironia com a precariedade material e as “dificuldades técnicas” que nos pregavam a pecha do subdesenvolvimento, mas com a expressão de um estranho fenômeno coletivo: a aquisição da consciência de seu pathos, sob o fogo cruzado de uma ditadura pós-guerra. Porém, esta tomada de consciência não se configurou com a uniformidade triunfante que desejavam os setores da esquerda predominantes da época. A Tropicália afirmou, pelo contrário, a conflituosa e fragmentária tomada de consciência da antropofagia como veneno e antídoto, a consolidação do ideário cotidiano como identidade dinâmica (ou o cruzamento de muitas “desidentidades”, “polidentidades”, “protoidentidades” e outras palavras monstruosas). Conflituosa porque foi de encontro ao puritanismo da consciência esquerdista e cristã, fazendo frente, por exemplo, às noções de “povo” e “origem” que perduram e sustentam ideologicamente manifestações culturais como o samba carioca (o “samba de raiz”). Mas também porque realizou a exposição radical do “Brasil profundo”, marcado por disputas de poder, pela terrível desigualdade social e pelo conservadorismo dos diversos extratos sociais, por parte dos setores produtivos/especulativos, e até mesmo da indústria cultural. Por não se permitir a petrificação ideológica, por não se reduzir ao “tropicalismo musical”, o legado tropicalista ainda se espraia pela cultura brasileira dos últimos 40 anos e vai além.

3. Uma cena ? Zona norte do Rio de Janeiro, virada dos anos 1980 para os 1990. Pelas ruas da Tijuca, jovens de classe média baixa discutem um tema de suma importância, ainda que para muitos não fizesse o menor sentido: qual o melhor grupo de rock, Beatles ou Mutantes? Discussão que de tão simplória nem sequer se aproximava das redações dos grandes jornais e revistas, me intrigava a forma subserviente com que se admitia de saída ora o absurdo da questão, ora a evidente superioridade dos Beatles. Na comparação, ambos situavam-se na mesma perspectiva crítico-criativa dos anos 1960, com uma certa vantagem para Os Mutantes, detentores de uma paleta sonora deveras mais rica. Ao assistir ao documentário Tropicália, não pude evitar a surpresa diante da cena em que o maestro Rogério Duprat diz algo parecido: “Mutantes era melhor que Beatles!”.

4. Tristes trópicos ? Alguns fenômenos recentes vêm desmistificando e vivificando certas ideias e práticas ligadas à presença e ao mito tropicalista. Não só a reabilitação de Tom Zé, a reforçar as fraturas do grupo baiano, mas a redescoberta dos Mutantes no cenário estrangeiro também deslocou a abordagem do movimento: da formação do Brasil às demandas atuais da estética e da política mundial. Há dois anos, lendo o The Wire Primers, espécie de guia para a música moderna editado pela revista britânica Wire, notei a inclusão da Tropicália entre os movimentos mais relevantes do chamado “avant rock”. A coisa ficou ainda mais intrigante quando reparei que, da lista dos discos “tropicalistas”, constavam trabalhos que no âmbito nacional jamais seriam assim considerados. Cantiga de longe, de Edu Lobo, e Clube da esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, são dois desses discos. Edu Lobo, dentro das polarizações ficcionais da política cultural brasileira, aliaria-se supostamente ao grupo do realismo político de esquerda. O que teria a ver com a Tropicália? Com ouvidos abertos, despido de posturas ideológicas, o crítico Ben Ratliff percebeu ecos tropicalistas na instrumentação ousada e na diversidade rítmica de Cantiga de longe. Para aumentar o estranhamento, o guia ainda inclui Tucumã, de Vinicius Cantuária, e Barulhinho bom, de Marisa Monte. Fora de seu habitat natural, o fenômeno tropicalista se mostra maleável, abundante, e, eventualmente, mais pobre também, deslocado de seu pano de fundo político-cultural.

Foto de Paulo Salomão/Editora Abril

5. Questão de ordem ? O filme Tropicália se oferece como expressão e sintoma de um interesse estrangeiro pela estética multifacetada dos tropicalistas, acomodada sobre o rótulo “avant rock”. Com tal aproximação em direção ao “tropicalismo musical”, é provável que o público estrangeiro almeje simplesmente a fruição do rompante estético proposto por esses artistas, o gozo de uma “familiaridade remota” depositada sobre o prazer puramente estético, desvinculado de qualquer condição ou perspectiva política ou crítica. Limitado por esse interesse específico, o filme evita encarar o fato de que, por vezes, o enfoque estrangeiro adquire um viés político, particularmente no que diz respeito à questão racial. Curiosamente, entre os brasilianistas, esta parece ser a pedra de toque da história brasileira, o que se comprova já nos anos 1960 através do interesse de Thomas Skidmore acerca das relações entre raça e nacionalidade no Brasil do século XX. O mesmo se aplica ao trabalho do americano Christopher Dunn, que em Brutalidade jardim investiga a relação dos tropicalistas com a cultura africana e diaspórica, ressaltando um aparente paradoxo: por que a questão racial foi deixada de lado por praticamente todos os intelectuais brasileiros que se debruçaram sobre o fenômeno? Dunn relata que, vestido com uma indumentária dashiki da África Ocidental, Gil subiu ao palco para defender a canção “Questão de ordem” nas eliminatórias do Festival Internacional da Canção de 1968. Recebeu a seguinte crítica do produtor Nelson Motta: “Gilberto Gil partiu para uma nova linha, mais na base do sensorial e da emoção do momento (?) Gil derivou para uma linha mais africana, mais identificada com a moderna música negra internacional, mas não está sendo entendido nem pelo público, nem por mim (?)” (Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira, p. 154). Para o produtor, a investida africana preconizada por Gil implicaria na associação à sensorialidade e à espontaneidade de um “grito desordenado”, inoportunamente contrário à objetividade comunicativa da pop music. Ora, tal como na dinâmica antropocêntrica inerente aos grandes centros capitalistas dos séculos XIX e XX ? dinâmica denunciada por Lévi-Strauss em Raça e história ? a incorporação da temática africana, segundo Motta, denotaria as características da irracionalidade e do improviso. Diante desse curto-circuito entre posições antagônicas, demonstra-se que a Tropicália comportou disputas que, mesmo estrategicamente escamoteadas, sobreviveram e começam a dar as caras.

6. O que não é meu ? Evidentemente, não se trata aqui de compreender a Tropicália como um programa de superação teleológica das contradições nacionais, mas de sublinhar a capacidade de improviso, transfiguração e criação da chamada “cultura brasileira”, de tal modo que até mesmo essa noção se dissolveria diante de nossos mais caros paradoxos. A Tropicália comportava o empresário Guilherme Araújo e o “desempresário” Rogério Duarte, inserção capitalista e sobrecodificação socialista, mas também sobrevoava esses dilemas, tornava-os relativos e, muitas vezes, considerava-os como subprodutos da miopia nacional. Cabe sublinhar o papel central da frase de Oswald de Andrade “Só me interessa o que não é meu”, pois ela abre um horizonte cognitivo apto, se não a decodificar, a ao menos encaminhar os enigmas tropicalistas.

7. Tropicália sell out ? Um outro aspecto deixado de lado pelo filme, mas presente de alguma forma na perspectiva estrangeira, é a relação com o capitalismo. Ao apontar para o limite entre a sensibilidade e o oportunismo, entre a crítica e a integração no fenômeno tropicalista, Roberto Schwarz sugere a adesão indireta do grupo baiano aos “vencedores da ditadura militar”, não somente por que compartilharam, no que diz respeito à simpatia pela cultura norte-americana, os pontos de vista e o discurso dos ditadores, mas também pela posição ambígua, “simpatizando discretamente com a luta armada de Guevara e Marighella, sem prejuízo de defender a ?liberdade econômica’ e a ?saúde do mercado'” (Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas, p. 80). A trombeta do antiamericanismo acaba por indicar as tensões intrínsecas aos embates que se delineavam, ou, como o próprio Schwarz tratou de definir: “o fundo ambíguo da modernização” (“Cultura e política 1964-1969”, p. 75). Absteve-se, porém, de indicar com precisão a firmeza “apologética” das posturas denunciadas, se não apontando para os limites imanentes ao discurso provocador dos tropicalistas. Assim, ele afirma que “a simetria na recusa dos dois establishments (o da direita e o da esquerda) não era perfeita.” (Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas, p. 82), e completa, irônico:

A incongruência, no entanto – aí a surpresa -, é um achado estético, e não uma deficiência da composição. O contraste estridente entre as partes descombinadas agride o bom gosto, mas ainda assim, ou por isso mesmo, o seu absurdo se mostra funcional como representação da atualidade do Brasil, de cujo desconjuntamento interno, ou modernização precária, passa a ser uma alegoria das mais eficazes. (Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas, p. 94)

Por outro lado, seguindo a trilha aberta por Augusto de Campos em O balanço da bossa, Ratliff admite a ambiguidade das imagens e do discurso tropicalista enquanto catalisadora de seu aspecto propriamente crítico. Isto implica na admissão da ironia ao capitalismo, presente em diversas canções tropicalistas, ainda que desprovidas da “ira santa” característica da crítica de Schwarz e dos chamados compositores engajados. Ao analisar o primeiro álbum de Caetano (1967), Ratliff nota que, em contraste com a ironia triunfalista destilada em The Who sell out, álbum lançado pelo quarteto inglês The Who no mesmo ano, “Superbacana” e “Baby” soam “audaciosamente poéticas e vulneravelmente honestas”. Esta honestidade, entretanto, não conduziu os tropicalistas à resignação (como suporia o protestantismo anglo-saxão) ou à adesão cega aos pressupostos da luta de classes e da organização popular (como suporia os setores organizados da esquerda uspiana), se não que se encarnou em uma postura leve, atraente e particularmente crítica, que fustigava setores à esquerda e à direita. Aos mitos inerentes à concepção repressiva do poder (o “povo”, a “revolução”), oriunda do pragmatismo marxista da época, os tropicalistas opunham uma honestidade radical, detectando as fissuras do “Brasil profundo”, ideologicamente desalinhado e até certo ponto condescendente com os desmandos ditatoriais. Se se pode, à luz da perspectiva marxista, identificar a postura “alienada” dos artistas mais populares como Caetano e Gil, por outro lado torna-se incontornável a assunção da expressão franca e liberadora de suas obras de arte.

8. Tropicália/Tropicalismo ? A identificação do “tropicalismo musical” com a Tropicália dificilmente poderá ser substituída no imaginário corrente, mas convém atender à manutenção da condição essencialmente aberta à contribuição universal, característica do segundo termo: a universalidade da Tropicália, assim, aponta para o ethos improvável de uma cultura patológica e conflituosa. Ao elaborar um valoroso estudo acerca da cultura marginal, tida por muitos como “pós-tropicalista”, o ensaísta e escritor Frederico Coelho articula esta percepção de forma abrangente em seu livro, Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado, de onde extraio o trecho a seguir:

A Tropicália vai além dos marcos temporais oficiais do tropicalismo musical (outubro de 1967 a dezembro de 1968); vai além dos seus participantes (músicos baianos e paulistas, além de Nara Leão, Jorge Ben, Capinam e Torquato Neto); e vai além das suas intenções (regenerar o tecido cultural brasileiro, criticar o populismo nacionalista, retomar a linha evolutiva da música brasileira, integrar a música brasileira no mercado pop etc.). Surgindo por outros caminhos – que também passaram pela música popular -, a Tropicália chega em 1967 como um momento de radicalização cultural que definiu o que viria a ser feito depois pela marginália. Nesse sentido, o tropicalismo musical, apesar de ter um papel importante, não desemboca necessariamente na marginália; a tropicália, sim. (Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: Cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970, pp. 117-118)

Esta distinção ressoa na declaração fundamental de Gilberto Gil, asseverando que “a Tropicália era uma utopia, um território; já o Tropicalismo, o ?ismo’ mesmo já diz, era o momento?”. Reiterando a perspectiva de Coelho, Gil favorece uma percepção do fenômeno tropicalista enquanto síntese dos esforços em direção ao pensamento sobre a “desidentidade nacional”, envolto por todos os lados pelo binômio revolução/reação, mas eventualmente capturado pela ascensão de uma nova burguesia, a reboque do ciclo desenvolvimentista promovido pelo governo JK. Considera-se assim a Tropicália como uma “utopia”, tingida inclusive por tonalidades distópicas, ou ainda, como um “território” até certo ponto sucedâneo da própria “questão nacional”, que dispunha artistas, intelectuais, políticos e o homem comum sob um mesmo contexto, turbulento e criativo.

9. Mal dos trópicos ? Confirma-se, assim, a percepção standard de que os escritos de Oswald de Andrade e a hipótese antropofágica constituem-se como a referência central do fenômeno tropicalista. Contudo, se considerarmos tal fenômeno como uma chave interpretativa ao mesmo tempo mitológica e conflituosa sobre o Brasil, comportando a fragmentação e a dilatação de seus processos e perspectivas, abre-se inclusive o expediente para que a polimateia de Mário de Andrade se torne uma referência igualmente relevante. Do mesmo modo, pensando em retrospecto, vale elencar a sátira de Gregório de Matos, os experimentos avant-garde de Machado de Assis, o romantismo barroco de Sousândrade e a lira dionisíaca de Álvares de Azevedo como componentes do problema. E depois, o concretismo e o neoconcretismo, a geração de 45, as alegorias de Glauber Rocha, a “tropicália” de Hélio Oiticica, o teatro de José Celso Martinez, a “panamérica” de José Agrippino de Paula, o “vampiro” de Jorge Mautner (canção que já devorava os mitos bossanovistas, composta em 1958!), a originalidade e as soluções culturais de Jorge Ben, o rock da Jovem Guarda?

Gosto de defender, por exemplo, a visão de que até mesmo um autor como José Ramos Tinhorão se encontra essencialmente inserido em uma dinâmica intelectual de pesquisa e pensamento por assim dizer “tropicalista”, a julgar por sua obra, e não a partir das famigeradas polêmicas com a turma da bossa e da Tropicália. Sua análise da “música de barbeiros”, a despeito de gritantes contrações ideológicas (bárbaro x civilizado, técnica x emoção, nacional x estrangeiro), culmina com a descrição minuciosa de um caldeamento entre os “pretos retintos” e a contribuição da música europeia:

Para essa originalidade da música dos barbeiros ? que o pintor Debret apontaria no Rio de Janeiro ao registrar que tocavam valsas e contradanças francesas “em verdade arranjadas do seu modo” ? havia contribuído em muito a espontaneidade da formação musical de tais músicos populares. (História Social da Música Popular Brasileira, p. 161)

Tinhorão explora a constituição de uma música especificamente desenvolvida em terras cariocas, guiando o leitor através dos rastros de pelo menos três aspectos entrelaçados: os músicos populares que executavam a “música de barbeiros”; Debret, a presença europeia como “tribunal” e testemunha ocular; e, subrepticiamente, a presença das “valsas e contradanças francesas”, a indicar necessariamente a mestiçagem sonora. Evidentemente, esta conclusão não o torna um pensador alinhado ao fenômeno tropicalista, mas demonstra que, em fazendo parte deste contexto fragmentário, dificilmente poderia se desvencilhar de certas dinâmicas interpretativas essencialmente miscigenadoras. Vinculando liames até então desconhecidos pela maioria dos pesquisadores da música brasileira, iluminou a devoração cultural dos tempos idos, constituindo seu próprio território “antropofágico”. Assim o demonstra a objetividade, por vezes luminar, de seu método marxista-hegeliano à brasileira, combinando a eficácia da pesquisa à fulguração da descoberta.

O fenômeno tropicalista encerra uma percepção do caráter essencialmente miscigenador e carnavalizante da chamada “cultura brasileira”. Contudo, é preciso não banalizar este território: a música do Pará e de Recife não são “tropicalistas” simplesmente porque misturam influências brasileiras e estrangeiras, mas foram os tropicalistas os primeiros a tematizar de forma ampla, no âmbito da cultura, as técnicas e estratégias de síntese, improvisação e combinação empregadas por nós, brasileiros, miraculosamente encerrados em um território de proporções continentais e partilhando a mesma língua.

10. Epílogo ? Hoje a questão nacional se concentra mais diretamente sobre a economia (os dilemas do “fundo público” e demais contradições do capitalismo), nos problemas do estado e na política em geral. Porém, em relação à cultura torna-se cada vez mais difícil definir identitariamente matrizes e contextos, pois estes se deslocam e reconfiguram diariamente, em modo wireless. Os emaranhados, os cruzamentos, as brechas, a hipervalorização do encontro, da dissolução, da composição e da recomposição, atestam a sobrevivência do dilema antropofágico, “decifra-me ou devoro-te”, impulsionado para além das questões nacionais. Fala-se há anos em um “pós-tropicalismo”, ou, como Dunn, em “traços do tropicalismo” ? alguns ainda se referem aos “estilhaços”… Prefiro dizer: são rastros dos trópicos, ou, com Celso Favaretto, “um incessante movimento de devoração que recusa ancorar-se em significados já fixados”. Não se resumindo à continuidade do projeto modernista, mas também não se deixando codificar pelo academicismo dos “movimentos”, a Tropicália perdura porque demonstra que, como perspectiva cultural, pode ter uma insólita sobrevida a partir da perspectiva de outras culturas. Porque se prestou a comportar nossos mais terríveis paradoxos, extrapolou o domínio das mazelas nacionais e iniciou uma troca de mão dupla com nossa época: de um lado, nos empresta uma perspectiva liberadora, em vistas de um porvir tão nebuloso quanto promissor; de outro, beneficia-se pelas dinâmicas políticas e culturais da época, fragmenta-se, vivifica-se. Uma preocupação com a questão do “novo” definiria o impulso tropicalista, ou, como declara Hélio Oiticica em uma cena de Tropicália, trata-se, em suma, de “uma visão sobre as coisas”.

* Bernardo Oliveira é filósofo, crítico e ensaísta. Doutor em Filosofia pela PUC-Rio, pós-doutorando pela UFRJ e editor associado da revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche. Assina o blog Matéria, dedicado à crítica musical.

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