A primeira coisa a ser dita é que o fato de uma comediazinha rotineira como O lado bom da vida estar concorrendo a oito Oscar, entre eles os de filme e direção, é sintomático da perda de relevância cultural (não estamos falando de publicidade e comércio) desse superestimado prêmio. Afasto a tentação de dizer que é todo o cinema americano que está em declínio quando lembro que um filme infinitamente melhor, O mestre, não foi indicado nas principais categorias.
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Em vez de ficar lamentando os pobres critérios da rica Academia, cabe tentar entender por que o filme de David O. Russell tem agradado a tanta gente. Há nele, antes de tudo, a hábil combinação de duas tradições: de um lado, o drama de desajuste e inadequação pessoal; de outro, a comédia de pares românticos que vivem às turras até perceber que foram feitos um para o outro. Acrescentam-se a essa base pitadas de um pseudorrealismo “científico” contemporâneo (o diagnóstico de bipolaridade do protagonista), um multiculturalismo politicamente correto (um amigo negro, outro indiano), fórmulas narrativas de telesséries e, por fim, mensagens edificantes de autoajuda.
Nada haveria a dizer contra essa mistura de receitas de sucesso, a não ser pelo seguinte: ao atribuir a Pat Solitano (Bradley Cooper) um sofrimento psíquico dolorosamente real, a bipolaridade (antigamente chamada de psicose maníaco-depressiva), só com muita leviandade o filme pode sugerir que ele se curou graças ao amor de uma mulher (Jennifer Lawrence) e a slogans de pensamento positivo.
Mistificação perigosa
Não sei como lida com o assunto o romance de Matthew Quick em que o roteiro se baseou. Estamos discutindo o que aparece na tela, e o que aparece na tela é uma grande e perigosa mistificação. Haverá quem diga que, também nas comédias românticas de Howard Hawks, Leo McCarey ou Blake Edwards, o amor curava loucuras, doenças e maldições. A diferença, porém, é que em tais comédias o pacto que se estabelecia com o espectador era o da fantasia deslavada, do faz-de-conta puro e simples. Coisas como: Fulano era louco porque tomou uma martelada na cabeça – e o problema se resolvia com outra martelada no mesmo lugar.
Um esboço desse tipo de jogo aparece em O lado bom da vida no trauma de Pat com a canção Ma cherie amour, de Stevie Wonder, ouvida por ele ao surpreender a mulher no chuveiro com outro. Estaria aí um bom mote para o drama cômico, mas os realizadores parecem não acreditar nele, ou antes, não acreditar que ele baste para as plateias atuais. Então tome substrato “realista”: bipolaridade, internação, lítio, seroquel. Tudo com precisão “científica”. E mais: o momento traumático precisa ser revisitado de modo cru, com direito a espancamento, fraturas, sangue.
Por que tudo isso? Aparentemente porque Hollywood não confia mais na imaginação de seus espectadores, na sua capacidade de embarcar na ficção sabendo que se trata de ficção. Tem que lhes dizer a todo momento: isto é científico, olhe só os nomes dos remédios, a posologia. Veja: um soco assim, neste osso, causa uma fratura assim e assado. Tudo é “baseado em fatos reais”, com assessorias técnicas diversas.
O pior é que, sobre esse arcabouço “realista”, erigem-se as maiores tapeações, a ideia de que tudo se cura com o amor romântico, a reconciliação da família, a reiteração de clichês edificantes. No final, as oposições – entre o amor e a família; entre a ciência e a superstição – se revelam falsas; tudo e todos se congraçam.
“Você fala a verdade, e a verdade é o seu dom de iludir”, diz uma canção de Caetano Veloso. Mais ou menos o mesmo vale para esse falso realismo hollywoodiano atual, de que O lado bom da vida me parece um legítimo representante.