Mostra de São Paulo, entre o prazer e a angústia

No cinema

17.10.14

Começou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com sua miríade de filmes de todo o planeta. São 331 longas-metragens e quatro programas de curtas, em 35 salas da cidade. Para o crítico, assim como para o cinéfilo, o desafio é encontrar o caminho das pedras de modo a aproveitar ao máximo a experiência e ao mesmo tempo evitar a angústia e a sensação de estar perdendo o melhor.     

Não é fácil, mas vamos tentar, sempre ressaltando que se trata de escolhas e opiniões altamente subjetivas e que, sim, muita coisa boa ficará de fora. Neste início, dois filmes me causaram forte impressão, por motivos bem distintos, quase opostos.

O elenco de Relatos selvagens

O argentino Relatos selvagens, de Damián Szifrón, que abriu oficialmente a mostra anteontem à noite, entrará em cartaz no circuito comercial na próxima quinta-feira, portanto vou deixar para comentá-lo mais detidamente na ocasião. Por enquanto, basta dizer que é uma comédia feroz, com cinco episódios autônomos, todos girando em torno da ideia de vingança. Foi produzido por Pedro Almodóvar e está batendo todos os recordes de bilheteria na Argentina.

Em contraste com o humor negro e o ritmo frenético dos Relatos, a delicadeza e a intensidade de sensações do japonês O segredo das águas, de Naomi Kawase. Uma sinopse possível (e enganosa, como toda sinopse): numa ilha subtropical do Japão, de vida bucólica e assolada ocasionalmente por tufões, um garoto e uma garota, ambos de 16 anos e mais ou menos namorados, descobrem ao mesmo tempo o sexo e a morte. 

As primeiras imagens são de violência: um mar tempestuoso, um cabrito sendo degolado. Um homem nu é encontrado boiando morto nas águas. À turbulência dessas primeiras imagens corresponderá, de certa forma, o alvoroço dos sentimentos do adolescente Kaito (Nijiro Murakami), cujo pai mora em Tóquio e cuja mãe, saberemos depois, sai com diferentes homens.

Força dos elementos

Já Kyoko (Jun Yoshinaga), a amiga de Kaito, é uma menina nativa, perfeitamente integrada à ilha e a seus ciclos naturais. É filha de um surfista veterano e de uma xamã que tem uma doença terminal e espera serenamente a morte.

Poucos filmes terão conseguido expressar de modo tão contundente, por meios puramente cinematográficos, a ideia paradoxal de potência e fragilidade da vida. Durante uma conversa doméstica, cotidiana, Isa (Miyuki Matsuda), a mãe xamã, ergue os olhos para uma figueira multissecular e parece de repente enxergar algo que não vemos. Ela estica a mão no ar, como se tocasse com os dedos a fímbria delicada da existência.

A morte de Isa (e isto não chega a ser um spoiler), ao ar livre, cercada da família e de amigos que cantam e dançam uma cantiga tradicional, deve ser uma das mais belas da história do cinema.

Em torno de tudo, permeando os sentimentos e ditando o ritmo, a força dos elementos, em especial o mar, revolto ou calmo, turvo ou translúcido. “Cinema é cachoeira”, dizia Humberto Mauro. Mas o mar quebrando na praia também serve.

Algumas apostas

Como em todos os anos, quem não gosta de se arriscar conta com algumas escolhas mais ou menos seguras: os cineastas já conhecidos, as retrospectivas, os clássicos restaurados. Nesta edição, cabe apostar nos novos filmes dos irmãos Dardenne (Dois dias, uma noite), de Bruno Dumont (O pequeno Quinquin), Olivier Assayas (Acima das nuvens),  Andrei Konchalovsky (As noites brancas do carteiro), Robert Guédiguian (O fio de Ariadne), Denys Arcand (O reino da beleza), Atom Egoyan (À procura), Roy Andersson (Um pombo pousou no galho refletindo sobre a existência), Yoji Yamada (A pequena casa), além do novo curta de Manoel de Oliveira, O velho do restelo, que acompanha o longa Alentejo, Alentejo, de Sérgio Tréfaut.

Tsili, novo filme de Amos Gitai

Quanto a Tsili, o novo de Amos Gitai, diretor que muito admiro, acho que eu não estava à altura, pois cochilei durante boa parte da sessão – e não estou aqui para reforçar preconceitos contra “filmes chatos”, “parados”, “em que não acontece nada”. Pelo contrário: gosto de muitos que são descritos assim por alguns espectadores (e até por alguns críticos). Em suma: Tsili, narrativa de refugiados judeus na Ucrânia ocupada pelos nazistas, não falou comigo, mas isso pode ser problema meu, e não do filme.

Brasileiros, documentários, Jia Zhangke

Entre os brasileiros, escolhas certeiras são Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós, vencedor do Festival de Brasília, A história da eternidade, de Camilo Cavalcante, vencedor do Festival de Paulínia, e os excelentes Casa grande, de Felipe Barbosa, e Sinfonia da necrópole, de Juliana Rojas, além dos novos de Domingos Oliveira (Infância), Lírio Ferreira (Sangue azul) e Ugo Giorgetti (A cidade imaginária).

É grande a expectativa quanto a certos documentários: Cássia (de Paulo Henrique Fontenelle, o mesmo do ótimo Loki), sobre Cássia Eller; Brincante (de Walter Carvalho), sobre Antonio Nóbrega; Campo de jogo (de Eryk Rocha), sobre campeonato de futebol de favelas cariocas; Profecia – A África de Pasolini (dos italianos Gianni Borgna e Enrico Menduni); e sobretudo Jia Zhangke, um homem de Fenyang (de Walter Salles).

O cineasta Jia Zhangke

O cineasta chinês, homenageado da mostra, virá a São Paulo para o lançamento do livro O mundo de Jia Zhangke (Cosac Naify), do crítico francês Jean-Michel Frodon, organizado por Frodon (que também estará presente) e Walter Salles. Zhangke falará ao público no domingo, dia 16, no ciclo “Os filmes da minha vida”.

Há ainda a retrospectiva completa de Pedro Almodóvar e uma mostra dedicada ao cineasta e distribuidor Marin Karmitz, da MK2, com filmes de Truffaut, Kieslowski, Chabrol, irmãos Taviani, Kiarostami etc. E mais: os três maravilhosos longas do espanhol Victor Erice (O espírito da colmeia, O sol do marmelo, O sul) e clássicos de Chaplin, Orson Welles, Buñuel. Bom proveito.

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