Vários críticos já usaram a palavra “aridez” para falar de Camille Claudel, 1915 e lembraram o débito de seu diretor, Bruno Dumont, com o grande Robert Bresson. Vamos destrinchar um pouco essas duas ideias, que na verdade são uma só.
http://www.youtube.com/watch?v=aEg7NjzwDO0
Para apreciar melhor a singularidade do filme de Dumont, talvez seja útil cotejá-lo com o Camille Claudel realizado por Bruno Nuytten em 1988 e estrelado por Isabelle Adjani. Ali, tudo conduzia ao espetáculo da catarse. A artista sufocada e incompreendida, a mulher oprimida por um ciumento e prepotente Rodin (encarnado por Gérard Depardieu), tudo era explicitado de modo quase declaratório, enfatizado pela música de Schubert e Debussy e ilustrado pelas obras da própria escultora. Basta ver o trailer:
http://www.youtube.com/watch?v=C5QhxSzz_CI
Em contraste, Bruno Dumont nega a catarse à personagem, sonega o espetáculo ao espectador. A paisagem seca e pedregosa de sua ambientação – o hospício do sul da França onde Camille passou suas últimas três décadas de vida – dá o tom de todo o filme. A luz branca, as cores “dessaturadas”, a ausência de música, o laconismo dos diálogos, a extensão exasperante de planos silenciosos, a recusa quase absoluta do contracampo (que em geral é uma espécie de alívio na narrativa), tudo configura, antropomorficamente, o estado exangue da protagonista, que aos poucos parece perder as forças até mesmo para se desesperar.
Arte como arremedo
O próprio recorte cronológico é eloquente: o inverno de 1915, quando, enclausurada já há dois anos, Camille (Juliette Binoche) aguarda a visita do irmão, o escritor católico Paul Claudel (Jean-Luc Vincent), com a esperança de que ele a tire do sanatório. É um momento de expectativa que logo se revelará uma ilusão, e põe em evidência o papel castrador, esterilizante, do catolicismo de Paul.
Esse movimento de esperança abortada ecoa no filme, em ponto menor, em inúmeras passagens. A mais tocante talvez seja aquela em que Camille apanha um punhado de barro e começa a esboçar com os dedos uma escultura, mas logo abandona e destrói raivosamente o trabalho – como se lembrasse de repente que naquele país (a loucura, o encarceramento) é proibido sonhar.
Do mesmo modo, todo sinal de criação artística, quando aparece, tem a forma do rascunho, do arremedo ou da paródia: o ensaio da peça de teatro por um grupo de pacientes, a Aleluia cantada fora do tom por uma interna, as notas agressivamente dissonantes tiradas dos instrumentos por outro grupo na sala de música. Os sons recorrentes que pontuam a narrativa são os passos sobre o cascalho e os grunhidos e uivos pré-verbais dos loucos.
Bresson e Juliette
Até aí estamos num território austero, que remete a Robert Bresson, com seu rigor quase ascético, que revela os personagens unicamente por meio de sua interação, ou seu atrito, com as coisas do mundo. O lugar em que, de alguma forma, Camille Claudel,1915 escapa da estética bressoniana é na atuação de Juliette Binoche. Bresson, como se sabe, tinha predileção pelos atores não profissionais, que chamava de “modelos”, e que deveriam surgir na tela desprovidos de expressão construída, de “interpretação”, como se fossem páginas em branco, que só se convertem em escrita por meio da montagem cinematográfica.
Já o filme de Dumont só ganha sentido graças à atuação altamente profissional e depurada de Juliette Binoche. Suas expressões, por exemplo, como espectadora do cômico e comovente ensaio teatral dos loucos, passando do riso à angústia e à melancolia, atestam o talento e a experiência de uma grande atriz em seu apogeu. A arte que o filme nos recusa (sob a forma de música ou escultura) emerge no rosto vincado, sofrido e desglamurizado de Juliette.