O caso Amarildo e a rotina dos desaparecimentos – quatro perguntas para Fábio Alves Araújo

Quatro perguntas

15.08.13

Onde está Amarildo?

O sumiço do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza (na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 14 de julho) pode mostrar à sociedade como são frequentes os homicídios no Brasil travestidos de desaparecimento, cometidos sobretudo pela polícia, às vezes em parceria com traficantes.

A afirmação é do sociólogo Fábio Alves Araújo, que se envolveu com o tema, primeiramente, em sua dissertação de mestrado concluída em 2007: “Do luto à luta – A experiência das Mães de Acari”, sobre a chacina que matou 11 jovens em 1990 sem que os corpos jamais surgissem.

Em 2012, Araújo apresentou a tese de doutorado “Das consequências da ?arte’ macabra de fazer desaparecer corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado”, na qual traça um panorama amplo sobre o assunto, apoiando-se em boa parte nos relatos de parentes de desaparecidos.

Nesta entrevista, o sociólogo fala como é difícil avançarem as investigações de crimes cometidos por policiais, que têm a prática de destruir as provas, a começar pelos corpos. Os familiares acabam assumindo a função de investigadores, correndo muitos riscos, assim como vêm correndo riscos e até sofrendo ameaças pessoas que têm criticado a ação da polícia nas manifestações de rua.

1) O que significa ou pode vir a significar o caso Amarildo para as famílias de desaparecidos e para quem investiga casos semelhantes?

Penso que o caso Amarildo, associado a outras questões, como o aumento dos registros de desaparecimentos e a suposta queda nos últimos anos dos registros de autos de resistência e homicídios, pode significar uma excelente oportunidade para levarmos a sério a possibilidade de que muitos casos de desaparecimento estão associados a homicídios. Uma questão para se pensar é que talvez o desaparecimento de pessoas esteja expressando em alguma medida, que não é possível precisar, uma nova forma de extermínio. Nova entre aspas, porque a prática de desaparecer corpos foi utilizada como método de repressão da ditadura, e hoje parece permanecer como linguagem da violência urbana. Quem investiga esse tipo de caso geralmente são os próprios familiares. Dentro da hierarquia de prioridades do trabalho policial não figura o desaparecimento, a não ser quando o caso tem uma repercussão pública grande, como ocorreu e vem ocorrendo com o caso Amarildo. Esse caso tem favorecido o debate sobre o tema dos desaparecidos e a participação da polícia nessas ocorrências, o que no fundo significa discutir as formas de controle social e manutenção da ordem e o uso excessivo da força. O caso Amarildo representa um momento favorável para pensarmos o desaparecimento enquanto um problema público, em suas variadas facetas, entre elas o desaparecimento forçado, e, consequentemente, pensar políticas públicas capazes de enfrentar o problema.

2) A chacina de Acari, tema de sua dissertação de mestrado, aconteceu há mais de 20 anos. O que aconteceu ao longo desse tempo que retardou tanto as punições dos policiais? E qual é a situação das famílias dos desaparecidos hoje?

Em julho de 2013, a chacina de Acari completou 23 anos. Trata-se de um caso emblemático marcado pelo desaparecimento de onze jovens da favela de Acari e seu entorno. As denúncias apontavam o envolvimento de um grupo de extermínio formado por policiais. O que aconteceu, em primeiro lugar, foi o que geralmente acontece nos casos de crimes cometidos por policiais e outros agentes estatais. Há, em geral, uma proteção de policiais acusados de crimes por parte de governantes e das diversas instâncias que compõem o sistema criminal e de justiça. Há uma tolerância ao uso excessivo da força. Mais do que tolerância, há um incentivo, uma permissão para matar. Portanto, foi muito difícil levar o caso adiante, primeiro em razão do envolvimento de policiais, o que por si só torna o andamento do processo mais difícil. Em segundo lugar, nos casos de desaparecimento há ausência da principal prova do crime, ou seja, da materialidade do crime, que seria o corpo, o cadáver. Se até hoje os casos de desaparecimento político ocorridos na última ditadura civil-militar brasileira não foram solucionados e os militares responsáveis continuam impunes e muitos cadáveres não foram ainda localizados e identificados, em relação aos desaparecidos de hoje a situação é ainda pior. Em terceiro lugar, há o problema do tempo. Quanto mais tempo se demora para iniciar a investigação dos casos de desaparecimento, mais difícil se torna conseguir sua resolução. O tempo é um inimigo, porque fica mais difícil reconstituir os caminhos que fizeram uma pessoa ao desaparecer. Uma quarta questão é que os familiares geralmente têm de enfrentar um processo de desqualificação e criminalização, mudando da condição de vítima para a condição de réu. A consequência disso tudo é que, diante do descaso do Estado, os familiares transformam-se nos principais investigadores, passam a desempenhar uma função que seria da polícia. Em 1993, uma das mães foi assassinada quando saía de um presídio. Ela tinha ido conversar com um preso que dizia ter informações sobre o desaparecimento dos jovens. Duas outras mães passaram por graves processos de adoecimento após o caso e vieram a falecer. Do ponto de vista da reparação da verdade e da justiça, a única coisa que aconteceu até agora em relação à chacina de Acari foi que em 2011 começaram a ser emitidos os primeiros atestados de óbito. No atestado de óbito, no espaço reservado para o local de falecimento, está escrito: “Chacina de Acari, nesta cidade”. Os familiares, mesmo tendo começado a receber os atestados de óbito, continuam sem resposta. Há que se destacar, no entanto, a rica experiência política das Mães de Acari, que praticamente inauguraram um modo de fazer política, mobilizando a maternidade, o gênero, como forma de romper a dupla condição de falar de um território criminalizado e de um lugar da pobreza. As Mães de Acari foram pioneiras na construção de um campo político próprio de protesto contra a violência policial, o campo dos familiares de vítimas.

3) Em sua tese de doutorado, você priorizou depoimentos de familiares. Os dados oficiais sobre desaparecimentos não são confiáveis?

O que existe em termos de dados oficiais é o levantamento que consta das estatísticas criminais produzidas pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Esses dados são muito genéricos, não estão ainda trabalhados a ponto de permitir uma melhor compreensão do fenômeno do desaparecimento. Há um problema conceitual na definição do desaparecido. Essa categoria engloba uma variedade de situações e circunstâncias, e os dados disponíveis do ISP não permitem um aprofundamento da questão. O próprio registro de ocorrência dos casos de desaparecimento dificulta a compreensão dos fatos, geralmente não há detalhamento nenhum do caso, não fornece pista alguma, o que praticamente inviabiliza qualquer investigação. Em relação ao depoimento dos familiares, se, por um lado, nos coloca o limite da generalização, é riquíssimo do ponto de vista do relato que faz da presença desse acontecimento particular (o ato de fazer desaparecer) e da violência física em geral na rotina de gestão dos territórios.

4) É possível identificar um modus operandi na forma que a polícia desaparece com corpos e procura apagar informações que se permita descobrir a verdade?

O desaparecimento é um modus operandi, que corresponde a uma técnica de fazer “sumir” corpos, e que não é praticado apenas pela polícia. A polícia trabalha ora em disputa, ora “colaborativamente”, com outros personagens do mundo do crime. Os relatos dos familiares dão conta de histórias de desaparecimento em que o corpo foi esquartejado e jogado para animais (cães, jacarés, leões). Outros relatam corpos picotados e jogados na Baía de Guanabara. Um exemplo desse tipo de caso aconteceu quando da drenagem para limpeza de um rio foram encontradas sete ossadas. Também há muitos relatos da existência de cemitérios clandestinos na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em outras situações, as pessoas são mortas e os cadáveres são enterrados como indigentes. O modus operandi do desaparecimento é a destruição de provas, a começar pela destruição do corpo.

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