A morte e a morte de Tintim

Colunistas

22.07.14

Quando estacionei meu carro no Baixo Gávea no fim da tarde da última quinta-feira, 17, ainda não sabia do assassinato da Tintim, ocorrido ali algumas horas antes. Minha primeira visão, já fora do automóvel, foi a vela acesa no chão, logo abaixo de uma dessas latas de lixo cor de laranja, nunca devidamente presas nos postes. Rostos de conhecidos chorando, aos quais me juntei, entre chocada e solidária, enquanto na minha cabeça passava um filme em câmera muito acelerada de todos os momentos felizes vividos no Guimas. Do filé do bêbado, prato favorito da minha filha, ao pão italiano quentinho do couvert, passando pelas toalhas de papel em que as crianças coloriam enquanto os adultos esperavam pela comida, tudo corria na minha mente, embora o tempo de fato parecesse estar em suspenso.

Amigos homenageam Tintim perto do restaurante Guimas. Foto de Severino Silva / Agência O Dia.

Na calçada, além da vela acesa, repórteres esperavam a polícia sair do edifício com as imagens das câmeras de segurança, a PM ainda acabando de tirar as faixas de “cena de crime” do local. Aquele seria um cenário urbano de criminalidade como outro qualquer se o Baixo Gávea não fosse uma espécie de quintal das nossas casas, se a Tintim não fosse um ícone da quase extinta simpatia carioca, se o Guimas não fosse um dos últimos redutos de uma certa forma de ser e de viver na Zona Sul do Rio de Janeiro, e sobretudo se o crime não fosse, em si, evitável. A confirmar a banalidade do mal, a roda de conversa em torno do absurdo do assassinato repetia o velho discurso de sempre: somos uma cidade ao deus-dará, abandonada à própria sorte, sem policiamento ou segurança. É preciso, urgente, inexorável e indispensável ter mais polícia nas ruas.

Dada a razoável impossibilidade de haver um PM em cada esquina, guardando pela vida de cada um de nós, a morte da querida Tintim talvez possa servir para discutir a inutilidade do clamor por mais policiamento nas ruas, a absoluta exigência de levar adiante o debate sobre a extinção da PM, numa tentativa de fazer valer a morte de Tintim como uma forma de despertar outro clamor, o de uma polícia inteligente, um judiciário responsável, uma municipalidade atuante, uma cidade em que a vida de todos os seus moradores tenha algum valor.

Tintim foi assassinada por um criminoso que fazia a chamada “saidinha de banco”. Trata-se de assaltar uma pessoa que acabou de sacar uma quantidade considerável de dinheiro em espécie, aparentemente muito comum no bairro. Tintim tornou-se alvo preferencial porque carregava R$ 13 mil, caminhou algumas poucas quadras com esse dinheiro na bolsa, era mulher, passava dos 60 anos e reunia o perfil da vítima ideal. Parece óbvio, no entanto, que os dois assaltantes já sabiam que ela tinha essa quantia na bolsa. Impedi-los, com uma polícia inteligente capaz de rastrear a rede de informantes que se esconde por trás do crime, teria sido uma ótima oportunidade de mostrar a eficácia de prisões temporárias, dessas capazes de adivinhar crimes que potencialmente ainda vão acontecer. Mais óbvio, segundo as estatísticas, é que o crime venha a ficar impune. Segundo o sociólogo Luiz Eduardo Soares, entre os 50 mil homicídios dolosos por ano, apenas 8% de casos são efetivamente desvendados. A segunda morte da Tintim se dará se o processo de prisão de seu assassino morrer engavetado, com os 92% dos crimes graves que não chegam a ser investigados.

Com o apoio do mesmo Luiz Eduardo, a proposta de emenda constitucional para desmilitarização da polícia corre no Congresso – desculpem a metáfora, eu sei, no Congresso, nada corre – a PEC-51, com dez principais pontos que incluem, além da desmilitarização, unificação do ciclo do trabalho de investigação, transferência aos estados e municípios da decisão sobre o formato de polícia que teremos nas ruas a partir da definição dos critérios territorial e criminal. Isso abriria a possibilidade de os municípios virem a assumir novas responsabilidades na segurança pública, transformando a Guarda Municipal num mecanismo de segurança urbana, cuja presença nas ruas ou é inútil ou é mera repetição da truculência da PM. Com a recente aprovação, no Senado, do poder de polícia das guardas municipais, ainda não se tirou um monstro da rua e já se criou outro. Na PEC-51, tanto as mudanças na PM quanto as atribuições da GM seriam submetidas a mecanismos de controle externo e participação da sociedade.

A certeza da impunidade alimenta a indústria de crimes com tanta força quanto a corrupção policial. Por outro lado, a violência policial indica a vacuidade do discurso que pede mais PMs na rua. Eu não quero mais polícia na rua, quero sobretudo outra polícia, porque nessa que está nas ruas eu não confio. Nem eu, nem 62% dos entrevistados em pesquisa do Ipea, que também identificou que 51,5% dos entrevistados consideram as abordagens de PMs desrespeitosas e inadequadas.

Inadequado é um eufemismo para classificar a PM fluminense, que ali nas franjas da mesma Gávea, na favela da Rocinha, assassinou o Amarildo há pouco mais de um ano. Eu não quero mais PMs nas ruas, quero o fim da PM tal como ela está concebida, porque estou convencida de que o absurdo do assassinato da Tintim é resultado da combinação entre corrupção, arbitrariedade, incompetência e violência desta polícia. Há anos e anos a PM fluminense justifica sua inoperância com a expressão “banda podre”, dicotomia em relação a uma suposta “banda boa”. Falta reconhecer que os dois lados da instituição da Polícia Militar são inseparáveis, um existindo para justificar o outro.

Que a vela acesa para Tintim na calçada da Gávea nos guarde de continuar acreditando nessa falsa dicotomia. Menos PM, mais segurança, menos militarismo, mais inteligência é o que podemos exigir para fazer justiça à Tintim. Ao infelizmente ainda atual refrão “polícia para quem precisa de polícia”, talvez seja preciso acrescentar a pergunta: afinal, de que polícia se precisa?

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