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Isso mesmo, querida, não sai do coração, não sai da cabeça. Antes mesmo de receber sua carta, já tinha lido o que a Viviana me enviou, que repassei para você: a indignação por outro crime anunciado. Dessa vez quem pagou com a vida foram Maria do Espírito Santo da Silva e José Cláudio Ribeiro da Silva, líderes do Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira. Vi na internet e na televisão uma matéria onde o José Cláudio aparece prevendo a própria morte, tal qual Chico Mendes fez há anos: parece que o país não anda nem se redime.
A bancada ruralista, no congresso nacional, vaiou, na Terça Terrível, o anúncio da morte dos dois ambientalistas. Por mais que esteja preparado para as baixezas dessa gentalha, fiquei chocado. Mas a vaia tem até lógica: quem esposa esse Código Florestal de merda, só pode mesmo ter instintos bestiais. A presidenta Dilma fez muito bem em classificar como uma vergonha a aprovação desse Código do Desmatamento, como devia ser chamado.
E onde foi a emboscada? No Pará, é claro. Terra de Jarbas Passarinho, que de passarinho não tem nada. Se lembra dele? Todo pimpão, ministro do Costa e Silva, fazendo uma peroração ridícula para justificar o injustificável, a assinatura do AI-5. Para isso, mandou os escrúpulos da sua consciência às favas. Mandou para sempre ao que parece, pois nunca vi protesto algum pelo que acontece de bárbaro no seu estado, sempre e sempre, e ele não tuge nem muge: o massacre em Eldorado dos Carajás (a ironia involuntária do nome dói), o assassinato da irmã Dorothy Stang, são os mais recentes e conhecidos. E os que nunca foram sabidos e registrados?
A notícia na imprensa escrita sai sempre diminuída, apertada, nas páginas interiores. A chamada na primeira página é minúscula. E nos dias seguintes o noticiário vai ficando rarefeito. Será por vergonha ou falta de? No exterior a repercussão é muito maior. No entanto, essa mesma imprensa, quando é sobre o MST – o mais importante movimento contra o latifúndio, surgido no Brasil desde as Ligas Camponesas de Francisco Julião nos anos 60, cuja atuação aparece no magnífico e definitivo Cabra marcado para morrer, filme de Eduardo Coutinho – o MST que você, Ri, conhece tão de perto, é sempre demonizado nas grandes manchetes, em alto e bom som. Só posso falar: MST neles, e cada vez mais, pois aqui cabe, como nunca, a fala sartriana: “O inferno são os outros”.
O Brasil, às vezes desespera, não é mesmo? Há quanto tempo a gente vai acompanhando o nosso país! Como o nosso grande Vinicius de Moraes em “Pátria minha”: “A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo/ É minha pátria (…) Mas sei que minha pátria é a luz, o sal e a água/ Que elaboram e liquefazem a minha mágoa (…) Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias/ de minha pátria, de minha pátria sem sapatos/ E sem meias, pátria minha/ Tão pobrinha! (…) tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito/ Nesta sala estrangeira com lareira/ E sem pé-direito (…) Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta/ Lábaro não: a minha pátria é desolação/ De caminhos, a minha pátria é terra sedenta/ E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular/ Que bebe nuvem, come terra/ E urina mar. (…) Mais do que a mais garrida a minha pátria tem/ Uma quentura, um querer bem, um bem/ Um libertas quae sera tamen/ Que um dia traduzi num exame escrito:/ Liberta que serás também / E repito!”
Você, com toda a certeza, pode repetir de pronto, a tradução de Vinicius. Eu, ainda não, pelo menos plenamente. Talvez porque não tenha sabido inventar, na infância, um brinquedo para enfrentar o escuro. Essas coisas se resolvem (ou não) na origem. Deve ser por isso que o meu medo tem o crachá permanente do “Congresso Internacional do Medo”, drummondiano:
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos.
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Me lembro do seu poema que é o gráfico do seu movimento; melhor, ele é a dinâmica do seu brinquedo. Respondo com o meu, escrito aos 20 anos, e que está no primeiro livro, e que descreve a casa-grande perdida aos 15 e o medo que nela sentia, igual ao seu, pelos seus grandes espaços de quartos abertos e fechados, salas e andares que se desdobravam. Mas veja só: enquanto você se movia, eu estancava.
CASA
A casa torta
escura e morta
é coisa virando no espaço
(sem espaço).
A casa enorme guarda:
furor de pedra escondida
parede em súbita subida
degrau embolado no escuro
salto de muro sem furo
corpo retido no corpo
desmaio de roupa vazia
olho aberto-fechado
bicho peludo deitado
toque encolhido na mão
pé cortado no chão
contato tecendo rochedo
imóveis móveis de som.
Ao escrevê-lo, a distância que me separava das sensações da infância e adolescência não era muito grande. O relógio interno ainda funcionava em outro tempo do que o de pulso ganho naquela ocasião: meu primeiro relógio adulto. Por incrível que pareça, até hoje, não consegui acertar, convenientemente, o que pulsa aqui dentro com o de fora. Me falta, sem dúvida, o brinquedo não inventado.
Chuva de beijos, Armando.
* A imagem da home que ilustra este post: o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre em foto de Alécio de Andrade (Paris, 1971)