A mão inteira da escrita

Correspondência

06.06.11

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Maria Rita, Rita, Ri, querida:

esta é a minha carta final desta correspondência. Este gutemberguiano por natureza se arriscou a escrever direto e digital, com o vento na cara, vento que parecia cósmico, vento do cyber espaço. Por ter escrito, desde que me entendo, para pouca gente, para os livros de tiragem baixa, de repente aceitei ser tomado pela vertigem de uma suposta recepção ampla. Fiz o que pude. Nossa correspondência foi permeada por poemas seus e meus e por uma escrita minha e sua que foi informada ou “informatizada” pelas nossas poéticas, pois, como você sabe, poetas não tiram férias, e a poesia de cada um – eles a percebem assim – é o instrumento de ponta da linguagem, que chega, primeiro, aos limites da fronteira íntima ou pública:

 

                                 Escrevia a um palmo de si.

                                 Às vezes nem isso. Às vezes

                                 por dentro, sem se separar

                                 da sua sombra, sequer do suor

                                 do corpo. Mesmo estando na máquina

                                 que reúne, mecânica, o que parece

                                 ruído, disparo – de revólver e relógio.

 

                                 Ou quando, em computador, se ouve

                                 ordenado, o franzido rumor

                                 de arame e oceano, e, também

                                 o roçar do rosto dos astros.

 

A sensação que tinha de escrever, pôr dentro de uma garrafa e jogar no mar alto mudou, momentaneamente: agora, o que sinto é que o escrito está dentro da cápsula de uma nave que carrega para sempre (?!) a mensagem. Quem sabe se o Prêmio São Paulo de Literatura não se toca com esse toque, com esse sentimento de amplitude, e no próximo ano não inclui a poesia também na sua premiação?

Acabo de ver sua carta agora. Jantei, revi um filme de vampiro sueco excelente (Deixa ela entrar) e me sentei aqui, ainda com gosto de sangue na boca, e dei com ela em plena madrugada. O introito de cima acabou combinando com o que você fala sobre poesia. Concordo com tudo ou quase. A variação, mais do que discordância, se dá sobre a inspiração, mais modo de ser do que outra coisa. Sou assim com tudo. Por ansiedade ou coisa que o valha, não espero a inspiração como o Cícero e você, porque me é impossível não ir de encontro a ela. O resultado é igual, cada um na sua. A minha “coragem de viver desse jeito” também se encaixa nesse escaninho: acho que seria mais exato dizer que eu não quero “outra vida”. Que a minha ambição se realiza por esse canal único, para o que der e vier, sem garantia nenhuma de qualidade por ser dessa forma, é óbvio. Escrevi um texto longo, ainda inédito, que mandei para a revista Remate de Males, da Unicamp, chamado “Da incompetência”, onde procuro mostrar quando e como eu comecei a desaprender muitas coisas para tentar aprender uma coisa só. Imagine onde foi: nos Anos Fóbicos, confinado, no “quarto do pânico”, sem fim calculado. A pão e água, sem sexo nem circo. “A voz frágil”, não me lembro bem, mas creio que tinha um complemento algo retórico e paradoxal: “com a firmeza de uma gota eterna pingando no mesmo lugar vida afora”.

“Sem fraude nem favor” como diz o outro, sua poesia não tem nada de “menor”: ela tem o seu tamanho, o tamanho do seu investimento. Ela está sempre ao seu lado, variando: às vezes ela é a sua sombra, outras tantas você é quem é a sombra dela. O clima é de desconfiança. Se não fôssemos tão próximos, você escreveria mais? Tomara que não, pois de repente você vai ter que cortar minha cabeça, assim que sua “desconfiança” baixar. Acredito firmemente que você é que foge de sua poesia e não ela de você, ou então há uma briga interna ou brincadeira séria de pique e esconde, que é o seu estilo, o seu modo de estar no mundo. Mais pique do que esconde, bem entendido. Em tempo: concordo, de coração, com Clarice, na lista. Ela está no topo dela, por sinal. Ela é a rainha que não se sente como tal, dolorosa:

                                              FATALIDADE

                             Fogo selvagem acelera a madrugada

                             e se antecipa à chama submissa

                             do dia pleno, que atinge, por igual

                             com a dor ainda maquiada, a pele.

 

                             Queima, concentrado, detalhes do rosto

                             corpo, a mão inteira da escrita, do estigma

                             e marca o acidente da beleza.

 

Importantíssimo o depoimento sobre sua experiência com o MST. Sua entrega, dedicação e disponibilidade admiráveis. Antonio Candido e Celso Furtado, entre outros, consideram o MST o que de mais importante aconteceu no panorama político-social brasileiro nos últimos anos. Que bom estar do lado deles! Que bom sentir, naturalmente, o que eles sentem. Nos sentimos confirmados e autorizados. Os acontecimentos da semana passada continuam a produzir cadáveres. É o horror puro e simples. A bancada ruralista assiste a tudo calada. Quem cala consente. Nem uma palavra no congresso ou fora dele, nenhum “impulso de humana compreensão”. Se houver, será de difamação/desqualificação das vítimas. A compaixão é incompreensível para aqueles que têm, entranhado, secularmente, na sua cultura, a impunidade assassina.

Por falar em política, vai sair na serrote #8 (nas bancas na primeira quinzena de junho), um depoimento que fiz, via e-mail, atendendo a um pedido de Elio Gaspari, em 1999, sobre “poesia participante e praia” nos anos 70/80. O e-mail era longo e privado: eu o aumentei um pouco mais e ele chegou, onze anos depois, à luz da publicação.

Continuando nesse campo minado, mas necessário, quando a maior potência do mundo dá seguidamente maus exemplos executando inimigos sem julgamento, usando a tortura para conseguir seus objetivos, atentando contra a civilização, a barbárie se implanta e deforma os sentimentos dos mais fracos de princípios. Desde que nasci, os Estados Unidos estão em guerra. Há alguma coisa muito esquisita num país em que o piloto do avião que jogou a bomba atômica, cujo codinome era Little Boy, em Hiroshima, batiza sua aeronave com o nome de sua mãe, Enola Gay, para homenageá-la (sic)? Será que o The New York Times entrevistou D. Enola para saber se ela gostou da homenagem? E a The New Yorker, investigou, elegantemente, como sói acontecer nas suas páginas, as reações da velha senhora? Definitivamente, é uma família do barulho!

 

Pronto, me encerro. Essa correspondência nos serviu para conversarmos com tempo e extensivamente, testa a testa. Estou com você uma vez por mês, mas um fim de semana é pouco para dizer tanto. Há os compromissos de cada um, a sua “cartela” da qual eu tenho um ciúme, que nem te falo!!!! Mas pelo menos nos olhamos de perto, o que, para mim, é uma exigência do meu coração.

                     Te beijo. Armando.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: reprodução de manuscrito do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, cujo original se encontra sob a guarda do Instituto Moreira Salles

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