O diretor Oliver Stone

O diretor Oliver Stone

Ficção e reportagem

No cinema

11.11.16

Numa semana convulsiva para o mundo, não poderia haver estreia mais oportuna que a de Snowden.

Mais do que retratar um “herói ou traidor” (segundo o apelativo subtítulo brasileiro), o novo filme de Oliver Stone tem o mérito de expor alguns dos temas cruciais de nossa época: a ruptura das fronteiras entre o privado e o público propiciada pela internet, o uso da tecnologia da informação para o controle social e político, as tensões geopolíticas e as guerras remotas, a promiscuidade entre poder institucional e grandes corporações, a margem estreita para a atuação de uma mídia independente etc.

Talvez seja o melhor trabalho do diretor, cuja filmografia irregular tende a sentimentalizar assuntos de grande impacto e simplificar personagens históricos a ponto de transformá-los, aí sim, em mocinhos ou vilões. (É o oposto, por exemplo, do projeto estético de um Ken Loach, que busca revelar a dimensão política das trajetórias individuais.)

Mecanismos de identificação

Em Snowden não chega a ser diferente. Encontramos ali todos os mecanismos do cinema clássico para induzir a identificação do espectador com o protagonista Edward Snowden (Joseph Gordon-Levitt), tanto no plano do roteiro – a exposição dos seus momentos de dúvida íntima, a exibição de seu brilho intelectual, a reiteração de sua integridade e boas intenções, seu dilema entre o amor e o “dever” – como no da decupagem e da mise-en-scène: a adoção do seu olhar em todas as cenas-chaves, as mudanças de ritmo da imagem e de tratamento sonoro para sugerir sua percepção individual, o uso intenso de música emotiva.

Mas o fato é que o conjunto é de uma eficiência tremenda. Stone sabe conduzir sua plateia. E alguns momentos de bom cinema – ou de cinema, simplesmente – aparecem aqui e ali. Um exemplo é a cena em que, fazendo sexo na cama com a mulher (Shailene Woodley), o olhar de Snowden se dirige, num zoom vertiginoso, ao olho minúsculo da câmera do notebook, sugerindo numa única imagem toda a consciência da vulnerabilidade daquele ato íntimo, de sua exposição à bisbilhotice alheia.

Outra passagem marcante, do ponto de vista da construção visual, é a da videoconferência entre Snowden e seu chefe na CIA (Rhys Ifans). Vemos toda a cena com o protagonista de costas para nós, diante de uma tela do tamanho de uma parede onde surge a imagem do escritório do chefão. Este se aproxima da câmera à medida que intensifica seu tom ameaçador, até o ponto em que seu rosto toma toda a tela/parede, subjugando um Snowden cada vez menor, reduzido a uma silhueta na contraluz.

Soluções como essas, que expressam visualmente o assunto do filme, sua “tese”, alternam-se com clichês e muletas tradicionais dos dramas de suspense. Tudo somado, é um filme envolvente e necessário, que fala como poucos sobre o tempo histórico que o produziu.

Ficção e reportagem

Em tempo: o roteiro de Stone e Kieran Fitzgerald se baseou em dois livros: um de ficção, Time of Octopus [Tempo de polvo], roman à clef do advogado russo Anatoly Kucherena sobre o caso de seu cliente Edward Snowden, e o outro de reportagem, The Snowden Files [O dossiê Snowden], do jornalista britânico Luke Harding.

O jornalismo, aliás, é um dos subtemas mais interessantes do filme, dado o papel crucial que o premiado repórter Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e o diário The Guardian desempenharam no destino de Snowden. Greenwald, como se sabe, vive hoje refugiado no Rio de Janeiro com seu companheiro David Miranda. Sua publicação digital The Intercept nos lembra diariamente que ainda existe jornalismo empenhado, combativo e independente.

Através da sombra

Está entrando também em cartaz, discretamente, um filme brasileiro dos mais interessantes, Através da sombra, versão de Walter Lima Jr. para a célebre novela de Henry James A outra volta do parafuso. Esse complexo terror psicológico já tinha sido (bem) filmado por Jack Clayton em 1961, com o título Os inocentes e Deborah Kerr no papel da protagonista, uma preceptora enviada a uma mansão rural para cuidar da educação de duas crianças que podem ou não ser vítimas de fantasmas.

O veterano Walter Lima, um dos expoentes do Cinema Novo, transferiu a ação para uma fazenda cafeeira do Brasil do início dos anos 1930, quando a crise internacional levou os produtores a queimar toneladas de café. A protagonista agora é a professora solteirona Laura (Virginia Cavendish), egressa de um convento, mandada por um grande proprietário (Domingos Montagner) à fazenda da família para cuidar dos sobrinhos órfãos (Mel Maia e Xande Valois, extraordinários atores-mirins).

A versão brasileira acentua, talvez de modo exagerado, o substrato erótico das visões da protagonista, sua histeria (no sentido freudiano), que era apenas sugerida no texto de James. A par disso, Lima Jr. constrói com sutileza e poesia a atmosfera doentia do relato, por meio de travellings elegantes pelos ambientes espaçosos do casarão e de um aproveitamento máximo da paisagem ao redor.

Um exemplo singelo de seu talento sutil: o fantasma de um antigo capataz – ou a alucinação da preceptora – surge sobre o telhado da casa-grande. Depois disso, a mera exibição de uma parte do telhado, ou até mesmo só o ruído de passos sobre telhas, basta para sugerir a presença fantasmagórica, numa admirável operação metonímica.

Alguns planos abertos dos empregados da fazenda entre montículos fumegantes de café lembram quadros de Jean-François Millet, graças à magnífica fotografia de Pedro Farkas e à direção de arte de Clóvis Bueno. Como em alguns de seus filmes mais característicos (Menino de engenho, Inocência, Ele, o boto, A ostra e o vento), Lima Jr. faz da natureza – árvores, lago, plantações, fogo, vento – um organismo vivo com que os personagens interagem. É, nesse aspecto, o mais legítimo herdeiro do pioneiro Humberto Mauro.

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