Orson Welles em 1985

Orson Welles em 1985

O leão ainda ruge

No cinema

09.11.18

Cesse tudo o que a antiga musa canta. Um longa-metragem inédito de Orson Welles (1915-85), trinta e três anos após sua morte, é uma espécie de milagre, propiciado e trazido à luz justamente por uma empresa muitas vezes acusada de ajudar a arruinar o cinema tal como o conhecemos: a Netflix, provedora de filmes e séries via streaming. Estou falando, é claro, de O outro lado do vento, que Welles começou a rodar em 1970 e que retomou de modo intermitente ao longo de seus últimos quinze anos de vida, sem chegar a finalizá-lo.

 

 

Não se trata de uma obra de interesse apenas histórico ou biográfico: é um filme extraordinário, de uma potência criativa impressionante. Sua aparência híbrida e fragmentada recobre, na verdade, uma estrutura muito simples: no dia em que completa 70 anos, um cineasta consagrado e talvez decadente, Jake Hannaford (John Huston, estupendo), convida colegas, amigos, produtores, potenciais investidores e jornalistas para assistir em sua mansão no deserto a trechos de seu último filme, o ainda inacabado O outro lado do vento. Ele precisa de divulgação e dinheiro para concluir a obra.

O que vemos então, numa alternância vertiginosa, são trechos do filme rodado por Hannaford e cenas da caótica reunião social, que serviria também para aproximar o velho cineasta das novas gerações de realizadores e críticos. Nas breves conversas e nas tentativas truncadas de entrevistar Hannaford, tomamos conhecimento aos poucos da sua trajetória e da sua concepção de cinema e de vida. Um realizador mais jovem, Brooks Otterlake (Peter Bogdanovich), discípulo com o qual mantém uma ambígua relação paternal, serve-lhe um pouco como escudeiro, um pouco como porta-voz.

 

Hemingway do cinema

Imponente, astuto, irônico e algo melancólico, Hannaford é a própria encarnação do maverick, o realizador independente e indomável de que o próprio Welles é o exemplo mais típico. O personagem foi visto como um alter ego do diretor de Cidadão Kane, mas talvez seja mais correto vê-lo como um misto de Welles com Huston. A este último, cultivador de signos de virilidade, cabe melhor o epíteto de “Hemingway do cinema” citado por alguém ao longo do filme.

O fato é que Welles, com O outro lado do vento, eleva seu cinema a um novo patamar, o do filme-ensaio, que mistura ficção, documentário e poesia para ampliar as possibilidades de expressão audiovisual. Um gênero híbrido que, por outras vias, ele experimentaria também em Verdades e mentiras (F for fake, 1973), seu último longa, iniciado depois de O outro lado do vento, mas concluído antes.

Essa ruptura de gêneros e formatos terá sido, certamente, influenciada pelos experimentos de Godard e dos cinemas novos que floresceram nos anos 1960. Ao mesmo tempo, é um diálogo de Welles com as inquietações da chamada Nova Hollywood então nascente.

O filme dentro do filme (realizado por Hannaford) é, de certa forma, uma paródia do “cinema de arte” europeu do período (Bergman, Antonioni) e até de obras anteriores do próprio Welles, com uma certa exacerbação estilística, um excesso “artístico” na composição e na iluminação, ainda que algumas cenas sejam de uma força extraordinária, como aquela em que a protagonista (a croata Oja Kodar, última mulher de Welles) faz sexo com seu amante fortuito (Robert Random) no carro, ao lado do marido, que segue dirigindo na chuva. É uma cena de uma tensão erótica sem paralelos na filmografia do diretor.

 

Leão ferido

As cenas do presente narrativo – a festa de Hannaford –, por sua vez, mimetizam muito do estilo do cinema independente que invadia Hollywood na época: câmera na mão, abuso de zoom, luz eventualmente estourada, foco instável. Não por acaso, muitos dos atores em cena são cineastas: além de Huston e Bogdanovich, estão presentes também Norman Foster, Dennis Hopper, Claude Chabrol, Henry Jaglom, Paul Mazursky e vários outros. É um filme sobre cinema, afinal de contas.

É comovente ver como O outro lado do vento espelha a situação do próprio Welles em seu ocaso: um artista na plenitude de sua força criativa, mas lutando contra uma maré de interesses comerciais mesquinhos e de mediocridade intelectual. Um leão ferido, mas rugindo como nunca, desferindo golpes, rejeitando a autopiedade. Como se seguisse o verso de Dylan Thomas em homenagem ao pai agonizante: Rage, rage against the dying of the light.

O complemento natural a essa obra-prima é o excelente documentário Eles vão me amar quando eu estiver morto (2018), de Norman Neville, também em exibição na Netflix. Além de esmiuçar a acidentada produção de O outro lado do vento, o filme discute o seu significado na obra e na vida de Orson Welles. Ali ficamos sabendo, por exemplo, que a mansão em que foi filmada a festa de Hannaford era vizinha à casa explodida por Antonioni no célebre final de Zabriskie Point (1970), o que multiplica as camadas de sentido do filme.

 

Spike Lee

Outro programa obrigatório para os cinéfilos é a retrospectiva dedicada a Spike Lee pelo Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, no Rio e em Brasília. Aproveitando como “gancho” o lançamento do magnífico Infiltrado na Klan, sobre o qual escrevi há três semanas, serão exibidos 23 longas-metragens e quatro clipes musicais do grande diretor negro norte-americano. Vale por um curso.

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