O diretor Ryan Coogler

O diretor Ryan Coogler

A crista da onda negra

No cinema

02.03.18

Pantera negra é o primeiro (e possivelmente o último) filme de super-herói a ser comentado nesta coluna. A razão da discutível honra é simples: o filme de Ryan Coogler é desde já um marco na história de Hollywood e do cinema de entretenimento. É um dos campeões de bilheteria da temporada (nos primeiros dez dias de exibição nos EUA sua performance só ficou atrás da de Os últimos Jedi), alcançando a maior visibilidade de um filme de cineasta negro até hoje. E mais: com elenco esmagadoramente negro e temática vinculada, ainda que fantasiosamente, à história dos povos africanos.

Esse fenômeno não surgiu do nada – e não me refiro ao fato óbvio de o filme ser baseado num personagem dos quadrinhos Marvel criado por Stan Lee em 1966 (coincidentemente o ano do surgimento do movimento político dos Panteras Negras). Ele se insere num contexto de apropriação, por realizadores negros, de gêneros do cinema que até ontem, ao menos na indústria mainstream, eram privilégio de brancos: o drama psicológico (com Moonlight), o thriller de horror (Corra!), o documentário (Eu não sou seu negro), o drama histórico (Doze anos de escravidão, O nascimento de uma nação) e agora a aventura de super-herói.

Novas leituras do mundo

Com graus diversos de submissão ou subversão das convenções de cada um desses gêneros, essa onda de filmes configura um deslocamento espetacular do olhar e, consequentemente, das leituras do mundo e de sua história.

No caso de Pantera negra há um tal embaralhamento de gêneros ficcionais, matrizes mitológicas e influências pop que destrinchá-las todas demoraria meses. Tal como a vemos na tela, a saga do super-herói cuja identidade nada secreta é T’Challa (Chadwick Boseman), o príncipe herdeiro do reino africano de Wakanda, mistura, em primeiro lugar, tecnologia futurista e tradições ancestrais, a exemplo de Star wars e, em menor medida, Blade runner e Mad Max.

Também como nesses outros exemplos citados, predominam as imagens produzidas digitalmente, a tal ponto que quando surge uma paisagem “real”, como um campo onde um pastor tange suas ovelhas, ou uma periferia de cidade norte-americana, produz-se uma espécie de alívio das retinas tão fatigadas.

Outro pedágio que o filme paga ao gosto do público infantilizado de nosso tempo refere-se às lutas e batalhas ruidosas, frenéticas, hiperbólicas, à maneira dos videogames, em que acontece de tudo e não acontece nada, pois o único objetivo é apelar para a reação sensorial mais básica do espectador e sacudi-lo de seu torpor (a mim, ao contrário, causam um fastio mortal; não vejo a hora que acabem e a história recomece).

Há também, claro, uma abordagem exótico-pitoresca das tradições ancestrais africanas e seus rituais, de tal maneira que na cerimônia de coroamento de T’Challa os representantes de cada povo parecem diferentes alas de uma escola de samba, cada uma com sua fantasia, seus adereços e sua coreografia específica. Sempre foi assim em Hollywood: uma visão superficial, estereotipada e turística das culturas do mundo. Em tempos que enfatizam o lugar de fala, seria interessante saber como os povos africanos reais encaram essa apropriação pela indústria cultural.

Tudo isso faz parte do show: assim é Hollywood, that’s entertainment. Não se deve esperar um estudo histórico-etnográfico sério de um produto desse tipo.

Confrontação x integração

Falemos então das qualidades evidentes de Pantera negra. Do ponto de vista dramático, há o entrelaçamento de dois temas poderosos: o acerto de contas do protagonista com o pai (John Kani, significativamente um ator sul-africano) e, por extensão, com as raízes, com a tradição; e o embate entre duas concepções sobre como agir no mundo atual, com a força das armas ou com a busca de cooperação e entendimento.

O primeiro desses temas recicla de modo original motivos da tragédia grega, da Bíblia, de Shakespeare. Mas é o segundo conflito dramático que tem, talvez, aspectos mais fecundos. Refiro-me ao confronto central entre o Pantera Negra e seu jovem primo (simbolicamente, irmão) e aspirante ao trono de Wakanda, Erik Killmonger (Michael B. Jordan). Killmonger, ex-combatente norte-americano no Iraque e no Afeganistão, quer usar a superioridade tecnológica dos wakandanos, baseada no domínio do metal secreto vibranium, para derrubar governos e destruir povos, como um revide da opressão secular sofrida por seus ancestrais. Ele chega a lembrar, num diálogo pungente, os antepassados que se jogavam dos navios negreiros ao mar, por preferir a morte à escravidão.

T’Challa, por seu turno, deseja distribuir o saber e as conquistas de Wakanda com todos os povos, sobretudo os oprimidos e excluídos, promovendo a paz e a harmonia no mundo.

Curiosamente, o discurso furioso de Killmonger parece mais próximo do dos Black Panthers dos anos 1960, enquanto o Pantera Negra mostra mais afinidade com a postura pacífico-integracionista de um Martin Luther King. Uma antinomia semelhante ocorreu também ao final do apartheid na África do Sul: à atitude belicista de grupos zulus radicais (“Kill the boer” era sua palavra-de-ordem), Nelson Mandela opunha uma perspectiva de conciliação entre as várias etnias que compunham o país, incluindo os brancos.

Um último comentário, sobre a presença dos brancos em Pantera negra: ela é ultraminoritária, mas significativa. Há o branco mau, Ulysses Klaue (Andy Serkis), e o branco bom, Everett Ross (Martin Freeman). O primeiro, que rouba o vibranium de Wakanda para vender aos americanos, é caracterizado quase como um neonazista de almanaque (ou um rancoroso bôer sul-africano): louro arruivado de cabelo reco, musculoso e atarracado, cheio de tatuagens, exalando bazófia por todos os poros. O segundo é um simpático, compreensivo e solidário… agente da CIA. Esta última circunstância indica que talvez as concessões do filme ao status quo tenham ido um pouco longe demais.

Seja como for, é um alento ver na tela tantos esplêndidos atores e atrizes negros, com seus belos corpos plenos de energia e seus rostos expressivos, em particular as valentes guerreiras de Wakanda. A sequência em que elas enfrentam um bando de trogloditas brancos num cassino de Busan, na Coreia do Sul, já valeria o filme.

Retrospectiva Visconti

Sobrou um espaço pequeno para falar de um artista imenso, Luchino Visconti (1906-76), de quem o Cinesesc, em São Paulo, exibe uma retrospectiva completa.

Basta dizer que esse cineasta comunista e homossexual, filho de uma das famílias mais tradicionais da nobreza milanesa, foi um dos expoentes do neo-realismo italiano, com filmes como o precursor Obsessão (1943), La terra trema (1948) e Belíssima (1951), que depois desenvolveu um universo profundamente pessoal, de expressão da decadência: decadência da aristocracia e da cultura humanista europeia, mas também do corpo e do espírito dos indivíduos, em obras-primas como O leopardo, Os deuses malditos, Morte em Veneza, Ludwig, Violência e paixão.

Um ponto de inflexão nessa filmografia seria Rocco e seus irmãos (1960), em que a saga de uma família de migrantes do sul estabelecida em Milão recebe um tratamento grandioso de tragédia ao mesmo tempo social, política e moral.

O refinamento estético de Visconti, com seus ambientes suntuosos e sua encenação majestosa, nunca resvala para o esteticismo decorativo (ao contrário do que ocorre com um epígono como Zeffirelli), porque ali a beleza está sempre tensionada pelas paixões, transtornada pelo desejo, corroída pela passagem do tempo, pela doença ou pela loucura.

Há uma passagem, na célebre sequência do baile de O leopardo (1963), em que o príncipe de Salina (Burt Lancaster) sai da exuberância elegante do salão onde se dança e entra em outro cômodo amplo, ocupado por inúmeros vasos e cântaros de diferentes formatos. São os urinóis dos convidados. O olhar melancólico do personagem, contemplando o “lado b” de toda a vaidade humana, é de uma força só comparável aos planos finais de Morte em Veneza (1971), em que o sol mediterrâneo faz derreter a maquiagem do protagonista Von Aschenbach (Dirk Bogarde), sob a música matadora de Mahler. Grandeza é isso.

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