A 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo vai exibir até o final deste mês mais de trezentos filmes de todo o planeta. Mas bastaria um para justificar o evento: Infiltrado na Klan, de Spike Lee, cuja primeira sessão, na noite de ontem (18/10) no Cinesesc, suscitou aplausos calorosos e gritos de “Ele não”. Se nos Estados Unidos o alvo é Donald Trump, no Brasil ele tem outro nome.
É talvez a melhor obra do diretor, que parece condensar ali toda a energia de seus primeiros trabalhos e a experiência acumulada ao longo de uma carreira irregular, mas sempre muito pessoal. Inspirado na história real do policial negro Ron Stallworth (John David Washington), que no final dos anos 1970 se infiltrou nas fileiras da Klu Klux Klan, o filme articula o sempre veemente discurso antirracista de Spike Lee a uma narrativa policial clássica, engenhosamente glosada e, no limite, desconstruída.
Exaltação da negritude
Com isso, Infiltrado na Klan consegue a proeza de ser ao mesmo tempo engraçado e eletrizante, modulando esses dois estados de modo às vezes gradual, outras vezes brusco. O que encanta na sua abordagem do tema racial é que ela nunca se restringe a uma denúncia vitimista da opressão, mas se desdobra numa exaltação da negritude, com suas potências e suas belezas. Isso se expressa por exemplo, na sequência do comício do líder black panther Stokely Carmichael (Corey Hawkins) em Colorado Springs, seguido por uma festa animada por contagiante black music. Aliás, a trilha sonora (James Brown, Cornelius Brothers, The Temptations, Prince) é, como sempre em Spike Lee, uma atração à parte.
Outro traço recorrente do diretor, a releitura crítica da indústria cultural norte-americana, ganha aqui um tom ácido na exposição do racismo constituinte de clássicos como E o vento levou e, principalmente, O nascimento de uma nação. A sessão deste último para um entusiástico grupo de fanáticos da Klu Klux Klan poderia parecer exagerada e caricatural se não soubéssemos que a realidade é ainda pior.
Mas é para os minutos finais que Spike Lee reserva seu lance mais ousado e certeiro. Quando tudo parece se encaminhar para o happy end clássico dos filmes policiais, com os mocinhos punindo os bad guys e comemorando sua camaradagem, o diretor quase literalmente nos atropela com a brutalidade da história, mostrando o que persiste do passado no presente.
De quebra, há as atuações magistrais do protagonista John David Washington e do sempre bom Adam Driver como o seu parceiro judeu Flip Zimmerman. Na já tradicional homenagem de Lee a um astro negro do passado, o veterano Harry Belafonte descreve com voz trêmula mas serena o horripilante caso de linchamento de um rapaz negro.
Culpa
Entre os filmes programados para estes primeiros dias de Mostra, alguns se destacam pela força e pela originalidade.
Um exemplo é o dinamarquês Culpa, longa-metragem de estreia de Gustav Möller, premiado nos festivais de Roterdã, Sundance e Seattle. É um drama policial envolvente, tenso do início ao fim, que se passa todo numa sala do departamento de emergências da polícia de Copenhague. Acompanhamos o agente Asger Holm (Jakob Cedergren) em suas tentativas de resolver os mais variados problemas a partir das chamadas telefônicas que recebe.
Com base num roteiro bem urdido, num trabalho meticuloso de som e numa atuação precisa do protagonista, o filme aposta na capacidade imaginativa do espectador. E, de fato, somos levados a vivenciar diversos pequenos problemas e uma sangrenta tragédia familiar, ao mesmo tempo que o policial Asger é confrontado com um drama profissional e pessoal: matou um homem em serviço e será julgado no dia seguinte. Crônica cotidiana, thriller policial e drama moral, tudo junto numa obra impressionante.
Fuga
Uma abordagem igualmente original é a de Fuga, segundo longa da polonesa Agnieszka Smoczynska. O que vemos primeiro é uma mulher caminhando sobre trilhos de trem até chegar a uma estação (aparentemente de metrô) e subir à plataforma, toda suja e machucada, sob os olhares perplexos dos outros passageiros. É a história dessa mulher sem nome e sem origem (Gabriela Muskala) que será investigada e construída aos poucos, com avanços e recuos, diante de nossos olhos.
Também esse drama vigoroso poderia se chamar Culpa, pois esse é o sentimento que move boa parte das atitudes dos personagens. Com uma narrativa enxuta, diálogos lacônicos e um agudo sentido do ritmo, do espaço e da composição, é outro candidato a um dos favoritos do público e da crítica.
Julia e a raposa
Há paralelos entre Fuga e o argentino Julia e a raposa, também dirigido por uma mulher, Inés Maria Barrionuevo, e protagonizado por outra, Umbra Colombo, a Julia do título. Aqui, é uma atriz quarentona que, depois de ficar viúva, volta ao vilarejo onde tinha uma casa de montanha e tenta retomar sua carreira de atriz teatral e reconstruir a vida ao lado da filha pré-adolescente (a impressionante atriz mirim Victoria Castelo Arzubialde). Também composto de elipses e silêncios, o filme nos permite reconstituir aos poucos a trajetória biográfica e emocional de Julia. Não chega à originalidade atordoante de uma Lucrecia Martel (de cujo Pântano sofre uma influência perceptível), mas está longe de ser previsível ou vulgar.