O diretor Lars von Trier

O diretor Lars von Trier

Mundo em convulsão

No cinema

22.10.18

Leia também o primeiro post da cobertura da Mostra.

Por uma ironia geográfica, o coração da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a avenida Paulista, é também o epicentro da confrontação política que abala atualmente o país. A região, que concentra grande parte dos cinemas participantes do evento (Cinearte, Espaço Itaú, IMS, Cinesesc, Reserva Cultural), é a mesma onde aconteceram no fim de semana manifestações opostas: no sábado a favor de um candidato, no domingo a favor de outro. Ou melhor: contra um e contra outro. A sala de cinema, numa situação assim, é ao mesmo tempo um refúgio e um observatório que permite examinar a vida a uma certa distância.

Dito isso, vamos aos filmes.

 

O incorrigível Lars von Trier

A casa que Jack construiu, o novo de Lars von Trier, é uma resposta jocosa e erudita aos críticos de seu cinema que confundem representação e realidade ou esperam mensagens edificantes e por isso sentem-se incomodados com os aspectos desagradáveis de suas obras, que não são poucos.

 

 

O Jack do título (Matt Dillon) é um serial killer com transtorno obsessivo-compulsivo, que encara suas atrocidades como obras de arte, ou antes como um work in progress, mais ou menos como a casa que, na qualidade de arquiteto frustrado, pretende construir.

Nessa sua trajetória, quem age como seu interlocutor oculto (para o espectador) é Virgílio (Bruno Ganz), o poeta que conduziu Dante pelos círculos do inferno. Os atos brutais de Jack são entremeados ironicamente por breves referências musicais, literárias e iconográficas, numa colagem heterogênea em que se destacam o perfeccionismo maníaco de Glenn Gould e a visão mística de William Blake, para quem o homem traz dentro de si tanto o tigre como o cordeiro, mas se engana pensando poder ignorar o primeiro e se passar unicamente pelo segundo.

É um filme divertido e revoltante, como tantos outros do diretor. Trechos marcantes de alguns deles (Melancolia, Ninfomaníaca) são citados aqui e ali. A casa que Jack construiu deve ser lançado em breve no circuito exibidor e despertar as habituais reações de admiração e repulsa. O que mais pode desejar um artista inquieto, talentoso e egocêntrico como Lars von Trier?

 

Deslembro

É possível ainda fazer um filme de ficção original sobre o período da ditadura militar brasileira? Deslembro, de Flávia Castro, mostra que sim, desde que se parta de uma visão pessoal, afetiva, mais do que de uma intenção programática de análise ou denúncia. Na história da adolescente Joana (a esplêndida Jeanne Boudier), que cresceu no exílio na França e volta com a mãe, o padrasto e os meios-irmãos ao Brasil na época da anistia (1979), há com certeza muito das reminiscências da diretora, que anteriormente realizara o contundente documentário Diário de uma busca, sobre seu pai, o militante de esquerda Celso Afonso Gay de Castro.

É um filme de uma delicadeza ímpar, ao reconstituir aqueles anos duros pelos olhos de uma menina em crescimento, com toda a mistura de sentimentos que isso implica: o lúdico, o medo, a culpa, a vontade de saber, a sexualidade florescente. Voltaremos a falar dessa pequena joia quando chegar ao circuito. Por enquanto, basta destacar dois de seus pontos fortes, além da sutileza da construção narrativa e visual: o elenco, com destaque para atrizes de três gerações (Jeanne Boudier, Sara Antunes e Eliane Giardini), e uma inspirada trilha sonora, que vai de Noel Rosa a Lou Reed, passando por The Doors, Caetano Veloso e Rita Lee.

 

Em chamas

Ganhador do prêmio da crítica em Cannes, o coreano Em chamas, de Lee Chang-dong, observa de perto, sem julgar nem explicar, os passos hesitantes do jovem Jongsu (Yoo Ah-In), filho de camponês e aspirante a escritor. Seja na metrópole Seul, seja na pequena propriedade do pai, Jongsu parece mover-se pelo acaso, sem iniciativa e sem forças para mandar em seu destino. Encontra na rua uma vizinha de infância e em poucos dias se apaixona por ela.

 

 

A entrada em cena de um playboy cínico, que encara as relações humanas como um jogo amoral, introduz um elemento de perturbação não só na vida do rapaz como na própria narração, isto é, no modo como o filme nos apresenta seu mundo. Poucos cineastas usam com tanta habilidade o silêncio, as elipses, o acúmulo de uma energia surda que há de explodir em algum momento.

 

Guerra Fria

Num outro registro, ou mesmo numa concepção estética radicalmente diferente, mas igualmente eficaz, o polonês Pawel Pawlikowski conta a história de um amor dilacerado pela Guerra Fria, ou seja, pela divisão do mundo em hemisférios inconciliáveis.

Guerra Fria ganhou o prêmio de direção em Cannes e dá para perceber por quê. Sem perder o foco no casal principal, o filme atravessa quinze anos de história europeia (de 1949 a 1964) acompanhando a trajetória musical do pianista e maestro Wiktor (Tomasz Kot) e da cantora e dançarina Zula (Joanna Kulig), ora juntos, ora separados, por cidades como Varsóvia, Berlim, Zagreb e Paris.

Das canções folclóricas polonesas ao rock nascente, dos espetáculos cívicos moldados no realismo socialista aos esfumaçados clubes parisienses de jazz, a música do século conduz esse drama amoroso e político filmado num preto e branco altamente matizado (como o do longa anterior do diretor, Ida) e num formato de tela pouco usual hoje em dia, 1.37:1, ou seja, quase quadrado, como nos antigos filmes hollywoodianos.

 

Tragam a maconha

Entre tantas obras amargas sobre os dissabores passados e presentes do mundo, um refresco bem-vindo: o uruguaio Tragam a maconha, de Denny Brechner, Alfonso Guerrero e Marcos Hecht. Seu argumento é engenhoso e descabelado: com a legalização da maconha no Uruguai, falta produção para atender à demanda. Em vista disso, e da iminente visita do então presidente Pepe Mujica ao então presidente Barack Obama, é enviada uma missão secreta aos Estados Unidos para tentar importar a erva para o Uruguai.

 

 

A equipe enviada é composta por um farmacêutico amalucado (Denny Brechner, um dos diretores) e sua mãe não menos avoada (Talma Friedler). Eles vão a eventos de maconheiros no Colorado, onde o uso também é legal, entram em contato com a embaixada uruguaia em Washingon, negociam com traficantes jamaicanos de Nova York – enfim, um enredo quase de chanchada, mas levado na fronteira do verossímil e com cenas de registro documental.

O próprio Mujica interage com os personagens – e no final declara que “o humor é republicano” e que “rir dos governantes” é saudável para a democracia. Ao final da sessão, não são poucos os espectadores que expressam vontade de mudar para o Uruguai. Em face dos últimos acontecimentos, é possível prever um êxodo rumo ao sul.

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