O sexo trágico e lúdico de von Trier

Cinema

14.01.14

Apesar do título e do astucioso marketing ao seu redor, Ninfomaníaca não é propriamente um filme de sexo, nem tampouco sobre sexo. Pelo menos em sua primeira metade, que entrou em cartaz agora (a outra deve vir daqui a alguns meses), o sexo – ou, mais precisamente, o abismo da sexualidade feminina – é “apenas” o veículo por meio do qual Lars von Trier dá prosseguimento a sua investigação, hipótese ou tese sobre a espécie humana como um projeto que não deu certo.

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No filme, temos o seguinte esquema: Joe (Charlotte Gainsbourg), uma mulher machucada recolhida na rua e acolhida em casa por um solitário de meia-idade, Seligman (Stellan Skarsgard), conta a este sua trajetória sexual, desde as brincadeiras de infância até a maturidade. Ela se autodiagnostica como ninfomaníaca e como uma pessoa egoísta, indiferente ao sofrimento dos outros.

Narrativa episódica

A narrativa episódica, em sucessivos flashbacks, a partir do ponto de vista da protagonista, permite ao diretor esquivar-se das amarras do realismo e da verossimilhança. Como outros de seus filmes, Ninfomaníaca não é uma narrativa realista, mas um “conto moral”. Aos patrulheiros do naturalismo e da verossimilhança, Lars von Trier responde com ironia na cena em que Joe narra uma coincidência absurda que lhe teria ocorrido. Seligman contesta que “esse tipo de coisa não acontece na vida real”, ao que ela retruca: “Você tem duas opções: ouvir meu relato ou não ouvir”. É o pacto que o cineasta estabelece com seu público.

A relação entre narradora e ouvinte transforma, evidentemente, o que é narrado. Joe despeja sobre Seligman sua experiência bruta e ele busca absorvê-la, ordená-la, dar-lhe um sentido, mediante o recurso à matemática (os números de Fibonacci), à música (a polifonia de Bach) e a outras tentativas de ordenamento do caos.

Estamos aqui, a meu ver, no cerne do pensamento estético e filosófico de Lars von Trier, que contempla a humanidade com uma dupla lente, a do trágico (a solidão irredutível do indivíduo, a vacuidade dos bons sentimentos, a dor inescapável) e a do lúdico (os jogos, o humor, a representação, o deleite estético, a paródia). Pode reparar: esse binômio aparece em todos os filmes do diretor.

Esquemas mentais, construção estética

Um dos encantos de Ninfomaníaca, entre muitos outros, é a incorporação dos esquemas mentais propostos por Seligman à própria forma da encenação do relato de Joe. Um exemplo: depois que ele fala das três vozes essenciais que compõem a polifonia bachiana, ela passa a definir seus três principais amantes de acordo com cada uma dessas “vozes”. Com isso, a cada um deles passa a corresponder um timbre do órgão (ou do cravo) e a própria tela se divide em três para contemplar essa trindade.

Ao mesmo tempo em que brinca com esses jogos conceituais de construção estética (à maneira do Resnais de Meu tio da América), Lars von Trier exibe seu perfeito domínio da encenação realista, ainda que esticando-a até o absurdo, como por exemplo na antológica sequência em que uma ressentida esposa abandonada (Uma Thurman) vai com os filhos à casa de Joe para fustigar o marido que a deixou.

Cosmopolita e ao mesmo tempo profundamente nórdico, herdeiro das angústias metafísicas de Dreyer e Bergman, mas talvez mais cético e certamente mais cínico do que ambos, Lars von Trier optou por encarar o drama humano com humor, sem perder a gravidade. Seu cinema, de certo modo, é uma versão engenhosa e complexa do dito popular “a gente sofre, mas se diverte”.

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