O exílio de uma menina morta

Literatura

13.01.14

Uma menina morta e sem nome. Um ente, um zéfiro. Uma presença ausente a trespassar a obra. Assim é a principal entidade do livro A menina morta, de Cornélio Penna, obra publicada em 1954 e que completa 60 anos neste 2014. Digo entidade porque sequer é possível chamar a menina de personagem. O livro começa com doze breves capítulos que trazem a preparação do corpo e o enterro da criança, cenas nas quais Penna, também artista plástico, deixou falar a mão do pintor. Sua veia artística pode ser lida nas nuances das linhas de A menina morta, cuja história ultrapassa as páginas da literatura e adentra a vida real do autor, que nasceu em Petrópolis em 1896 mas teve a trajetória marcada por parte da infância vivida em Itabira do Mato Dentro, em Minas Gerais, e Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, em curta passagem.

(Fundação Casa de Rui Barbosa)

 

Cornélio Penna transmudou para as páginas de seus livros as experiências vividas nessas regiões, as histórias dos antepassados e mesmo os objetos antigos que colecionava. O exemplo mais contundente é o quadro da menina. Tudo começou quando o escritor ganhou um retrato de presente um retrato, um óleo de uma menina morta, conforme era o costume em meados do século XIX, quando muitas crianças morriam precocemente. Era uma tia-bisavó do autor, com semblante angelical. A criança, acredita-se, tinha por volta de seis anos. E a tela tornou-se vital para o romancista. A menina era sua noiva, dizia ele a amigos como Rachel de Queiroz e Augusto Frederico Schmidt, alguns dos quais levou para contemplar a presença que ornava a parede de sua casa. Em entrevista a O Jornal, do Rio de Janeiro, conta o autor que um dia, ao escrever um capítulo de Repouso, tinha perto de si o quadro. Ao final, quando reuniu todos os capítulos, esse se destacou. Penna o excluiu e guardou, decidindo, nesse instante, a escrever A menina morta. Assim o fez, traduzindo a tela em palavra, tanto na presença da criança – “coberta pelo vestido de brocado branco, de grandes ramagens de prata onde brilhavam os tons azulados e cinzentos, coroado de pequeninas rosas de toucar, feitas de penas levemente rosadas e postas sobre seus cabelos curtos, cortados rente da cabeça” – quanto no quadro, que ganha as paredes da casa-grande onde se passa a história.

Penna eleva a menina à condição de mito, tanto na vida real quanto na escrita. O livro nada traz dos dados biográficos da criança, nem o nome, nem o que a levou à morte, nem a idade. Ao mesmo tempo sabe-se muito dela: o doce preferido, o apreço por flores, pelo jardim, os hábitos, a fisionomia, o amor pelos escravizados. Pode-se visualizá-la, porque descrita exatamente como no quadro-fotografia que o levou a desenhar o livro. Quanto mais a aura de mistério e a rememoração por parte dos personagens aumenta, mais a figura da menina e sua presença ausente vai se fixando. Ao final tem-se sua imagem impregnada na memória, tanto na do leitor quanto na dos personagens.

Toda a trama se passa durante os últimos tempos da escravidão no Brasil e tem como cenário a fazenda do Grotão, próxima a Porto Novo, no Vale do Paraíba, região onde o escritor viveu parte da infância. Dali levou memórias das fazendas e das histórias ouvidas por lá, inclusive sobre a própria menina morta, sua bondade com os escravos, sua leveza e doçura. Segundo o escritor Augusto Frederico Schmidt, “não se terá escrito sobre a escravidão no Brasil, até hoje, nada mais impressionante do que alguns dos capítulos de A menina morta” (1958). Mas o tema não é o centro da obra. Pelo contrário, o foco é o social e o humano. O texto adentra o ser, suas fugas, angústias, memórias, solidão. O exílio de cada um, seja branco, seja preto.

Há controvérsias sobre o estilo do livro: realismo, romance histórico, psicologismo ou mistura de gêneros? Há quem o considere gótico. Outros, que se aproxima do realismo fantástico. Colocam Penna ao lado dos escritores ligados à intelligentsia católica, a exemplo de Lúcio Cardoso, de Crônica da casa assassinada. O certo é que a obra é distinta entre a literatura produzida no Brasil até os dias de hoje. Altamente ligado ao catolicismo, Penna realmente era. Mas a obra, apesar da presença religiosa, até mesmo pela época, não é apologética. Tanto que Penna cria um anjo-gente que, no décimo segundo capítulo, sobe aos céus, concluindo na terra a sua passagem. A cena encerra um ciclo, elevando a menina à condição de mito incapaz de mudar a vida das pessoas, a sua realidade social. É mais como uma máscara que encobre até certo ponto a verdade de cada um. A partir de sua ascensão, as transformações no Grotão seguem em cadeia. A menina sai de cena enquanto humana e retorna enquanto presença ausente. Terminado o enterro todos voltam à aparente normalidade da fazenda, mas em pouco tempo percebe-se que isso é impossível e a mudança, inevitável.

A morte é constante fio condutor do romance, principalmente o fim simbólico, marcado tanto pela loucura quanto pelo silêncio e pela dependência das personagens agregadas, todas mulheres vivendo de favores, assim como pela degradação da fazenda e do sistema vigente, a escravidão e o patriarcalismo. A paralisia das cenas desenhadas pelo escritor-pintor Cornélio Penna são tempo de morte. A própria casa sombria, com seus móveis e cortinas pesados, é espaço de morte.

Nesse contexto a menina morta é um bálsamo, a mais viva entre todos os moradores do Grotão. Todos se apegam a ela. O sofrimento por sua perda é imenso. Escravizados, empregados da casa-grande, familiares e padres sofrem em demasia com a sua morte. Quando a menina se vai, os véus caem. A criança parece o único e último esteio. São mais de 500 páginas de mistério crescente, em que o autor joga com sons estranhos e aparições, com instantes em que o próprio leitor espera ver a menina a sorrir e a puxar a saia de alguém. Nas entrelinhas ficam os jogos sem respostas, as insinuações e reticências inúmeras deixadas como rastros…

A história ganha ainda mais peso e força com a chegada da irmã da menina, Carlota, que vem da Corte para ocupar o lugar que seria da morta. A personagem segue até o final do livro, protagonizado apenas por mulheres: a menina morta, Carlota, Dadade, que representa o bobo da corte, Mariana, a mãe das duas jovens, e a prima Celestina são as imagens mais fortes. Mesmo que não sejam as mais presentes no romance, são as condutoras da trama.

Infelizmente, Cornélio Penna e toda a sua obra vivem no limbo literário brasileiro. Raras são as pessoas que já ouviram falar dele, mais raros ainda aqueles que já o leram. Qualquer livro seu, somente em sebos. Alguns, como Cornélio Penna – Romances Completos, de 1958, da editora José Aguilar, só por preços bem salgados, e com muita sorte. O autor escreveu apenas quatro obras: A menina morta, última criação, Fronteira, Dois romances de Nico Horta e Repouso, deixando, ao morrer, fragmentos de Alma branca. Fronteira foi adaptado para o cinema pelo diretor Rafael Conde. Todo o espólio de Penna, inclusive o quadro da menina morta, encontra-se na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Lá estão também as gravuras e as pinturas do escritor, além de algumas caricaturas feitas para jornais quando ainda atuava como jornalista. O autor abandonou a pintura em 1929, por considerar que fazia literatura com a pintura, a qual, para ele, era incapaz de abarcar tudo o que a escrita poderia.

Cornélio Penna era considerado um artista estranho, alguém “desembarcado por engano neste planeta”, segundo escreveu Murilo Mendes. Um exilado em seu tempo, cercando-se de antiguidades e sempre indo a um passado mais distante quando o assunto era literatura. Na ocasião do lançamento de Dois romances de Nico Horta, em 1940, Mário de Andrade publica artigo no Diário de Notícias, no Rio de Janeiro, intitulando as obras do autor publicadas até então de “Romances de um antiquário”. Formado em Direito (profissão de gaveta), jornalista, pintor, escritor, Cornélio Penna é considerado o primeiro romancista brasileiro a adentrar as angústias dos personagens, a invadir “a problemática do ser”, segundo Adonias Filho. Estranho, hermético, sem gosto pela movimentação e pelas vaidades do mundo literário, Cornélio Penna, morto em 1958, realmente tornou-se um exilado em seu tempo e em todos os outros. Quem perde é o leitor brasileiro.

* Ana Vilela é jornalista e mestre em Literatura pela UnB.

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