Anatomia do choro

Séries

05.07.14
Neymar após ser atingido no jogo contra a Colômbia – Fabrizio Bensch / AP

Há momentos em que a dimensão do futebol como teatro – não no sentido mesquinho de encenação e fraude presente na expressão “fazendo teatro”, mas no de condensação de grandes dramas humanos – assume o primeiro plano, deixando para trás seus outros aspectos (técnicos, táticos, econômicos etc.). Estamos vivendo um desses momentos.

A semana foi balizada por dois choros convulsivos. O primeiro, do zagueiro e capitão Thiago Silva, antes da disputa por pênaltis contra o Chile; o segundo, de Neymar, ao sair de campo na horrível maca padrão Fifa e estilo IML, depois de ter sido atingido por uma joelhada que lhe quebrou uma vértebra, na partida contra a Colômbia.

O choro de Thiago Silva provocou controvérsia, desconfiança, sarcasmo. Muitos o consideraram sinal de fraqueza, de desequilíbrio, de medo ou de imaturidade. Daí o sentido de redenção de que se revestiu ontem o gol do capitão, que abriu o placar contra a Colômbia.

Já o pranto de Neymar, quando revelada a gravidade da sua causa, teve o efeito de unir os brasileiros – ou em todo caso a maioria deles – num sentimento entre a compaixão e a revolta. Mas é interessante observar a evolução da leitura desse pranto nas horas que se seguiram à contusão do atleta.

Reversão radical

Num primeiro momento, como na fábula “Pedro e o lobo”, ninguém levou muito a sério o choro de Neymar, dada sua reputação de “cai-cai”, chorão, “fazedor de teatro”. O jornal argentino Olé chegou a publicar, acima da foto do jogador na maca, a manchete “Continuam chorando”. Horas depois, quando se informou que Neymar estava fora da Copa por conta da fratura, o título foi trocado por outro: “É para chorar”.

Entre os torcedores brasileiros, desconfio que tenha ocorrido algo parecido. Como muitos não confiam plenamente nele, ou sentem-se incomodados por sua condição de celebridade onipresente e garoto-propaganda, atribuíram inicialmente o berreiro a sua “máscara”, seu desejo de atrair para si os holofotes, numa tarde em que não esteve inspirado dentro de campo.

A divulgação do diagnóstico de fratura, e da consequente exclusão de Neymar da copa, mudou drasticamente esse quadro. De repente, mais do que diante de um astro milionário do futebol mundial ou de um frequentador das páginas da revista Caras, nos vimos diante de um menino que teve quebrado seu melhor e único brinquedo, de um jovem que se viu espoliado de seu grande momento de brilhar e encantar o planeta. É como se projetássemos no choro de Neymar todas as injustiças, todos os sonhos frustrados, os projetos abortados, a vida que poderia ter sido e que não foi.

Esse sentimento é, evidentemente, ainda mais forte entre os colegas de ofício, como mostra a reação comovida e comovente não apenas de companheiros de equipe, mas de atletas de todos os países, do argentino Messi ao alemão Podolski, para citar dois dos primeiros a manifestar solidariedade.

David Luiz

Há futebolistas que conseguem se elevar acima das sujeiras e mesquinharias que marcam o dia-a-dia do esporte e conferir grandeza a seus gestos e palavras. É o caso do zagueiro David Luiz, que ao final da vitória sobra a Colômbia fez questão de cumprimentar e consolar o craque adversário James Rodríguez, um dos destaques deste mundial.

 

David Luiz, aliás, acabou se constituindo no grande jogador da seleção até agora. Numa equipe que segue aos trancos, sem articulação de jogadas, ele tem assumido não apenas o papel de escudo que lhe cabe, mas também de arco e de flecha. Seguro na defesa, tem sido o principal lançador de bolas ao ataque, quando não vai lá “pessoalmente” para entregá-la aos companheiros. Fez dois gols decisivos (contra o Chile e contra a Colômbia), foi eleito ontem “o homem do jogo” pela Fifa e tende a aumentar seu papel de liderança na semifinal contra a Alemanha, quando a seleção não contará com o capitão Thiago Silva.

Faltou espaço para falar da partida em si. O primeiro tempo do Brasil foi melhorzinho do que vinha sendo, mas não a maravilha que alguns cronistas têm pintado. Continuam escassas as jogadas coletivas, segue ausente o controle do ritmo do jogo, ainda falta inteligência no meio de campo. No próximo texto, buscaremos compreender por quê.

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