O real é o que resta

Filosofia

16.10.18

Já reparou como o mundo está deixando de fazer sentido? Mentiras fabricadas são consideradas verdadeiras por milhões, e fatos são desacreditados apesar de, ora bolas, serem fatos. Foi-se o tempo em que fatos podiam ser, e frequentemente eram, mal interpretados – por má fé ou burrice –, mas pelo menos as discussões se baseavam na realidade.

Agora um mundo paralelo ao real se materializa. Minha reação inicial foi pensar que uma distopia própria da ficção científica estava se aproximando, mas ao recorrer aos livros de Philip K. Dick cheguei a outra conclusão: a boa ficção científica muitas vezes descreve o mundo de hoje melhor do que as redes sociais.

Dick, que morreu em 1982, está na moda. Em 2017 chegou aos cinemas Blade Runner 2049, continuação de Blade Runner (1982), cujo roteiro é inspirado em Androides sonham com ovelhas elétricas?. O romance O homem do castelo alto é uma série em streaming. Contos seus viraram episódios da série Philip K. Dick’s Electric Dreams.

Ficção científica pode ser uma boa forma de escapar da realidade, apesar de as boas obras quase sempre ilustrarem aspectos da experiência humana que se tornam mais claros em contextos fictícios. Se a filosofia usou fartamente o conceito de “estado de natureza”, ou seja, a fantasia de um passado “que talvez não tenha existido” (como diz Rousseau, mas a técnica também foi usada por Hobbes e Locke), a ficção futurista faz o mesmo.

Poucas obras discutem tão bem a moralidade como Androides sonham…, na qual os androides são racionais, mas não possuem empatia, e alguns humanos são empáticos, mas pouco racionais.

Voltando ao ponto: o que é a realidade? Uma grande divisão se dá entre quem afirma que “a verdade está lá fora” (como na série Arquivo X, mas sem os ETs) e quem pensa que a apreensão da realidade depende do indivíduo. Ou seja, há quem acredite que existe um mundo repleto de objetos, e quem creia que a existência do mundo “lá fora” não é uma certeza.

Esta segunda postura é mais razoável do que parece. Se só percebemos o mundo externo a nós através de nossos sentidos, e estes por vezes nos enganam (como a impressão de que um objeto é maior do que outro apenas por estar mais próximo), a crença na minha visão fica comprometida. Pior: você pode estar sonhando e, no sonho, imaginar que está lendo este texto. Ou ainda pior: um Deus enganador pode estar colocando informações não existentes na sua cabeça! O que acabo de descrever é a argumentação de Descartes em Meditações sobre Filosofia Primeira, mas talvez você tenha se lembrado do filme Matrix (os humanos estão dormindo, e um mundo inexistente é implantado em suas mentes). Sugiro a leitura de A Maze of Death, de PKD.

Descartes chega a duvidar de sua própria existência, mas salva a possibilidade de se fazer ciência da seguinte forma: se há dúvida, há alguém que duvida; se há alguém que duvida, há alguém que pensa; penso, logo existo. Mesmo que ele esteja dormindo, ele existe. Não só ele, Descartes, existe, mas você também. Mas… e eu? Você sabe que você existe, mas como pode ter certeza de que eu existo? Como saber que qualquer coisa que não seja você existe? Há um “lá fora”?

Como diria a sua avó, se jogue diante de um ônibus em movimento e sinta se ele existe. Em outras palavras, a experiência nos mostra que existe um mundo externo a nós. O recurso à experiência é algo que une correntes filosóficas como o ceticismo e o cinismo. Seu principal tradutor para o mundo moderno foi David Hume, no século XVIII. O que nos mostra o que é o mundo, e quais suas regras, é a repetição da experiência. Se sempre vejo cisnes brancos, se mesas não costumam voar e se o sol nasce todos os dias, chego à conclusão de que todos os cisnes são brancos, que mesas não voam, e que o sol nascerá amanhã. Esse modo de pensar ganhou o nome de indutivismo.

Mas Hume desconfiou dessa certeza indutivista. E se existir um cisne amarelo ainda não visto? E se esta mesa gosta de voar quando lhe dou as costas? No caso do sol, hoje sabemos que, por semanas a fio, ele não nasce na Antártica e no Ártico durante o inverno… A solução de Hume foi reduzir a afirmação “isto certamente existe” para um mais prudente “acho que isto existe”. O que torna a ciência digna de seu nome não é um conjunto de definições deterministas, mas o estudo baseado na experiência, nas “impressões”. É probabilística. A ciência, para ele, é uma espécie de crença de que as coisas continuarão a ser como até hoje foram.

Mas Hume não iguala a gravitação universal de Newton à quiromancia. A ciência se baseia em impressões; as superstições não se baseiam em nada verificável. Se a ciência, para ele, é uma crença, a religião é uma ficção. Não preciso dizer que Hume não foi uma das pessoas mais queridas pela classe eclesiástica de seu tempo… Sorte de Dick, que, no século XX, já podia escrever (em VALIS), sem temer represálias, que viu Deus e que ele se chama “Zebra”. Não sei se Dick se sentiria tão livre para escrever isso no obscurantista século XXI…

Uma forma de separar o que é ciência do que não é – de definir o que está no campo da realidade “provável” e o que está no da ficção – foi sugerida por Karl Popper, em 1959, ao criar o falsificacionismo. Ciência é toda afirmação que permite ser provada falsa. Uma proposição, para ser considerada científica, tem que abrir a possibilidade de se demonstrar sua falsidade. Se você vir um cisne amarelo, acaba a ideia do cisne necessariamente branco. Se você provar que a velocidade da luz não é velocidade máxima atingível por qualquer partícula, você destrói a física de Einstein.

Qualquer afirmação que não se permita ser provada falsa não está no campo da ciência. Certa vez o Dalai Lama foi perguntado como podia provar a reencarnação. Sua resposta: “quero ver você provar a inexistência da reencarnação”. Ele está certo, não é possível provar isso. Na verdade, não é possível provar a inexistência de qualquer coisa! (Pense nesta última frase por um minuto… concordou agora?)

Se conhecer a verdade em si é uma quimera (Kant em Crítica da razão pura), devido aos nossos limites cognitivos, isso não quer dizer que quaisquer afirmações sobre a verdade sejam igualmente válidas. Quanto mais “lemos” o mundo pelo filtro de nossas crenças, menos vemos o que está “lá fora”, e mais enxergamos o que nós mesmos colocamos lá fora.

Em O homem do castelo alto, Dick descreve um futuro no qual os países do Eixo venceram a Segunda Guerra Mundial, o que, no livro, ocorreu há 15 anos. As regras de conduta, prestígio e humilhação na costa Oeste dos EUA são as japonesas; na costa Leste, nazista, matar judeus é tão normal quanto beber Coca-Cola (e Goebbels é um líder moderado). Até os personagens mais “bondosos” do livro são imorais, devido à normalização da brutalidade neste sistema de crença.

Será que estamos vendo o mundo através das crenças geradas por nossas “bolhas” nas redes sociais? Acho que sim, o que me ajuda a entender a multiplicação de afirmações absurdas que ouço, num mundo que parece o descrito em Ubik, de Dick, no qual quase todos os personagens vivem numa realidade cada vez mais sem sentido – e violenta. A crença em “verdades” não fundamentadas possibilita a normalização da violência. O “processo civilizador” descrito por Norbert Elias – a crescente autocontenção da parte animalesca do ser humano – parece ter esbarrado no muro dos grupos de WhatsApp.

O que fazer? PKD, quando se percebe pensando coisas sem sentido e achando que está enlouquecendo, escreve um livro (VALIS) em que os dois principais personagens são ele mesmo. O racional e o louco. Como saber que o que ele interpreta do mundo é verdade? Dick cria um método simples: “a realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece”.

Quer saber se aquilo em que você está pensando existe? Suspenda provisoriamente sua crença. Veja a coisa de novo, os fatos mais próximos da experiência, que permitem ser provados falsos. Você pode acreditar que o androide não é humano – mas vê-lo morrer, sem o filtro desta crença, traz lágrimas aos olhos, e você se torna mais humano de novo.

 

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