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Cena do filme O lar das crianças peculiares

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Cena do filme O lar das crianças peculiares

Apologia do esquisito

No cinema

30.09.16

Não li a trilogia O lar da senhorita Peregrine para crianças peculiares, de Ransom Riggs (publicada no Brasil pela editora Intrínseca), mas não é difícil perceber por que Tim Burton se interessou pela história e a transformou em seu novo filme. Crianças peculiares habitam desde sempre a filmografia do cineasta e o tipo de fantasia presente no livro é o mesmo do seu universo, em que se entrelaçam o sinistro, o cômico e o maravilhoso.

O enredo é um tanto complicado, ao menos para mentes gastas como a minha. O que se pode contar aqui sem estragar as surpresas é que o adolescente Jake (Asa Butterfield), instigado pelo avô sobrevivente da Segunda Guerra (Terence Stamp), sai à procura de uma fenda no tempo em que haveria um lar para crianças e adolescentes com estranhos poderes.

Algumas pessoas já disseram que livro e filme são uma espécie de mistura de Harry Potter com X-Men, e não deixa de ser verdade. Mas o interessante é notar como Tim Burton se apropria dessa fabulação e a integra em seu próprio sistema estético.

A ordem e o insólito

Já no início do filme, o bairro de Jake, a fachada da casa do avô, tudo configura um universo retilíneo e ordeiro de maquete ampliada, como o bairro de Edward mãos de tesoura ou a cidade em miniatura de Beetlejuice. Embora breve, a cena de uma festinha surpresa para o aniversariante Jake nos lembra que, para Tim Burton, o verdadeiro horror é a “normalidade”. Não por acaso a família vê o avô como demente e o garoto como perturbado, tratando o primeiro com condescendência superior e submetendo o segundo a uma psicoterapia.

Em contraste com esse mundo convencional, em que a imaginação é tratada como doença, a fenda que Jake vai encontrar ao desgarrar-se significativamente do pai é um portal para uma dimensão regida pela fantasia e pelo sonho (o que inclui o pesadelo), em que as esquisitices trocam de sinal e são vistas como valores positivos.

O percurso de Jake, no fundo, não difere muito do de Alice ou do menino Charlie Bucket de A fantástica fábrica de chocolate: mergulhos no abismo do imaginário, com suas maravilhas e terrores. O sortilégio de Tim Burton consiste em manter sempre teso o fio que une a poesia e a invenção, o humor e o horror, sem cair na pieguice nem na vulgaridade.

Uma sequência notável é aquela em que os vilões (os “etéreos”, que só Jake é capaz de ver) enfrentam-se com as crianças peculiares num parque de diversões em Blackpool, na Inglaterra. Até um determinado momento os visitantes do parque encaram os eventos esquisitos como parte das atrações, mas rapidamente a diversão se converte em susto e pânico. É nessa linha tênue entre uma coisa e outra que Tim Burton gosta de se equilibrar.

Aventura permanente

É comum as histórias fantásticas protagonizadas por crianças terminarem com uma tranquilizadora volta à ordem, à segurança da casa e da família. Aqui, porém, ocorre o contrário, uma libertação do cotidiano, uma opção pelo movimento perpétuo, uma aposta na aventura permanente.

Houve quem lamentasse a ausência, no elenco, de Johnny Depp e Helena Bonham Carter, parceiros habituais do diretor, mas essa ausência é compensada pela surpreendente e arguta escalação de veteranos como Terence Stamp, Judi Dench e Samuel L. Jackson em papeis chave.

Entre as crianças peculiares do lar da senhorita Peregrine (Eva Green) há um garoto que projeta seus sonhos numa tela, como um filme. Outro dá vida aos mais diversos seres híbridos, bizarros, criados com pedaços de animais e de objetos. Por meio dos dois, Tim Burton celebra indiretamente o caráter demiúrgico de seu próprio cinema. “A imaginação é um músculo que precisa de exercício constante”, dizia Buñuel. Eis então um filme que vale por uma revigorante sessão de ginástica.

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