Abaixo, texto de Cecília Himmelseher e Marcela Isensee – estagiárias de jornalismo em atividade no Centro Cultural do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. Cecília e Marcela falam sobre um livro raro, que pertence ao acervo de Literatura do Instituto: Pequeno oratório de Santa Clara, de Cecilia Meireles.
O Pequeno oratório de Santa Clara constitui uma preciosidade da Biblioteca de Lygia Fagundes Telles, no acervo de literatura do IMS-RJ. Em abril de 1955, a autora da obra, Cecilia Meireles, presenteou a amiga com o número 170, de uma tiragem de 320 exemplares impressos artesanalmente no Brasil.
O livro, publicado no Rio de Janeiro em 1955, tem ilustrações de Manuel Segalá, poeta e impressor-editor da Philobiblion, casa editorial que ficaria conhecida pelo primoroso trabalho com que divulgou obras importantes de autores nacionais e estrangeiros, usando sua lendária prensa manual chamada “A Verônica”.
Não é qualquer livro que vem acondicionado em uma caixinha de madeira em forma de oratório, e aqui o vocábulo significa o pequeno armário, de duas portas, feito para proteger o santo aí guardado. Foi nesse estilo que Segalá idealizou a “capa” do livrinho. Como gênero literário, oratório é composição musical cantada e de conteúdo narrativo. Este, de Cecília, apresenta 13 partes em que a autora conta a vida da santa.
Conhecida por Chiara d’Assisi, em italiano, sua língua materna, Santa Clara foi fundadora do ramo feminino da Ordem Franciscana, congregação que teve em São Francisco de Assis o seu maior representante do ramo masculino. Chiara era uma jovem rica, que abdicou de sua herança para seguir os passos do santo, a quem se ligou em laços de amizade e fé, como escreve a poeta na quinta parte do “Oratório”, intitulada “Fuga”:
Escutai, nobres fidalgos:
a menina que criastes
é uma vaga sombra,
fora de vossa vontade,
livre de enganos
e traves.
É uma estrela que procura
outra vez a Eternidade!
Despida de suas joias
e de seus faustosos trajes,
inclina a cabeça
com terna humildade.
Cortam-lhe as tranças:
ramo de luz nos altares.
Mais clara do que seu nome,
no fogo da Caridade
queima o que fora e tivera:
– ultrapassa a que criastes!”
A história deste Pequeno oratório de Santa Clara na verdade começa um pouco antes: em 1954, quando Frei Armindo Augusto, orador de notável talento, nascido em 1918, publicou, em Portugal, o livro Em louvor de Santa Clara para celebrar o sétimo centenário de morte da religiosa, que ocorrera no ano anterior. A publicação constitui uma homenagem das literaturas portuguesa e brasileira àquela que dedicou sua vida aos pobres. A colaboração do Brasil foi dada por Cecilia Meireles e Manuel Bandeira. Cecilia contribuiu com o “Oratório”, que na edição portuguesa recebeu o título de “Recitativo”. Manuel Bandeira participou com “Oração para aviadores”, em que atribui a Santa Clara o poder de proteger os aviadores. Na última estrofe:
Santa Clara, clareai
Estes ares.
Daí-nos ventos regulares
De feição.
Estes ares, estes mares
Clareai.
[…]
Santa Clara, clareai.
Afastai
Todo risco.
Por amor de S. Francisco,
Vosso mestre, nosso pai,
Santa Clara, todo risco
Dissipai.
Santa Clara, clareai.
Pelo visto, a nomeação da santa como protetora dos pilotos é criação do poeta de Pasárgada, que, como amante das palavras, se deteve no verbo clarear. Não se importou – ao que parece – com os santos oficiais padroeiros da aviação: São José de Cupertino e Nossa Senhora de Loreto.
Santa Clara é mais conhecida como padroeira da televisão, e isso se explica por um de seus milagres: um ano antes de sua morte, ela estava muito doente e não podia participar da celebração da eucaristia. Entretanto, teve uma visão do ritual completo e dessa forma assistiu à missa de seu próprio quarto.
A admiração de Manuel Bandeira pela edição do Pequeno oratório de Santa Clara está registrada na crônica intitulada “Santa Clara”, incluída em Flauta de papel. O cronista escreve sobre o tipo de papel, a fonte, marca-d’água: “Vão aqui todos esses pormenores para desde logo fazer sentir a bibliófilos o requinte da edição, verdadeiramente digna daquela de quem disse o seu contemporâneo Tomás de Celano que foi ?clara pelo nome, mais clara ainda pela sua vida, claríssima pelos seus costumes’, ou seja, no latim de intraduzível beleza: clara nomine, vita clarior, clarissima moribus.”