A poesia é a voz frágil da gente

Correspondência

01.06.11

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Oi, querido, obrigada pelos poemas, o do Vinicius e o seu. Não há, para mim, hierarquia entre os dois poemas, tão diferentes, assim como (aprendi com você) não há hierarquia entre os grandes poetas. Mas há, sei que há, por convicção a meu próprio respeito, os tais poetas “menores”, entre os quais me incluo. Ainda que vez por outra, da nossa modesta seara possa emergir algum grande poema, sei por intuição a diferença de grau entre grandes poetas e os pequenos. A razão da diferença nem sempre está no talento ou na tal da inspiração, tão desprestigiada entre os poetas que se pretendem cientistas da linguagem, ou entre os grandes arquitetos do verso (João Cabral?). Prezo a inspiração por experiência própria e mais ainda depois de escutar Antonio Cícero dizer que não costuma ir atrás da poesia, espera que a poesia o encontre. Parece uma descrição do momento da inspiração, não parece? Que por sua vez não garante, sabemos, a qualidade do poema por vir. Nem nos livra da angústia diante do vago espectro de poema ainda sem imagens nem palavras, e que às vezes se anuncia apenas na forma de um ritmo: “contorno de uma sintaxe” (Ana C.).

Mas se talento e inspiração não são suficientes para diferenciar pequenos e grandes poetas, onde está a linha (sempre móvel) que faz a demarcação? Eu penso, só de observar você, que a diferença está no lugar que a poesia ocupa na vida de cada um. Um poeta de primeira linha encontra um jeito de viver sempre aberto para a poesia, o que exige eliminar diversos outros interesses menores. Imagino que você, Drummond, Bandeira, Cecília Meirelles, Cabral e tantos outros – incluo Clarice na lista, concorda comigo? – tenham inventado uma relação com o tempo da vida prática que permite acolher a poesia, quando ela passa por perto. É uma coragem, viver desse jeito, assim como é preciso de ousadia para dizer, sem pudor: sou poeta. “A poesia é a voz frágil da gente”, me disse você, e acredito nisso. É preciso de coragem para não fechar a brecha pela qual a voz frágil se insinua. Às vezes, como no meu caso, não existe a decisão de tapar a brecha, mas a vida leva para um lado que exige tantas respostas seguidas (ou simultâneas) que a gente perde a poesia: onde está a pedra eu vejo pedra mesmo, como escreveu Adélia Prado.

Não sei se ainda existe lugar no panorama contemporâneo para o poeta ingênuo, no sentido que lhe atribuiu Schiller, em oposição ao – não entendo bem a escolha do termo – sentimental. Mas quando você me perguntou sobre minha relação com a escrita da poesia, ao escrever o prefácio melhor do que eu mereço para Processos primários, eu te disse que minha paixão não é a palavra, é a coisa. A poesia, quando eu chego a ela, resulta de um esforço enorme de dar forma escrita à coisa, ao mundo. Os poetas sentimentais, na concepção de Schiller, estariam além dessa pretensão ingênua, daí o valor, para os românticos, da ironia, do fragmento, e tal. Agora, penso: não será essa pretensão de tocar o Real uma forma de paixão naïf pela palavra? Existe para nós, humanos, algo no mundo que não se traduza em letra? Onde fica a tal coisa-em-si?

Esta é a penúltima carta e estou triste com o fim anunciado de nossa brincadeira séria. Quero incluir muitas conversas em uma só e corro o risco de, com isso, não estabelecer conversa nenhuma. Faço uma pausa para um turno de consultório e espero, quem sabe, pela voz frágil que haverá de me dizer como continuar esta carta.

 
Voltei. E mudo completamente de assunto. Vim com voz forte, agora.

Não quero perder a oportunidade de aproveitar sua menção ao MST para escrever duas ou três coisas que sei dele. Você disse que eu conheço bem o movimento. Imagine. Devo ter blefado um bocado para te transmitir essa impressão: eu mal toco na fímbria, na faixa litorânea desse que é o maior movimento social do mundo, hoje. Como me disse um jovem líder paraibano a quem dei carona entre a Escola Nacional e o Terminal Tietê: o MST é um grande organismo vivo. Vivo, mesmo: respira, se transforma, adoece, se cura, se readapta a diferentes ambientes e a novas circunstâncias. Tão vivo que até hoje, apesar da crise que vem enfrentando durante os últimos governos, que parecem aliados mas deixam suas reivindicações na geladeira, continua ativo e pensante.

Pode-se imaginar, a julgar pelas grandes marchas e manifestações que reúnem milhares de militantes, que o MST seja um movimento de massas no estilo do que Freud criticou no conhecido texto sobre a Psicologia das massas, de 1921. Não é. São tantos e tão diferentes os níveis de envolvimento e participação dos integrantes do MST, que uma grande autonomia de escolhas e decisões é exigida dos participantes, em todos os níveis. Até mesmo os aspectos doutrinários do pensamento que orienta o programa do movimento são contrabalançados por inúmeras dúvidas, debates, reformulações.

A organização respeita características diferentes nos diferentes Estados, admite muita gente que entra e que sai, e que depois de sair volta de outro jeito, em outro canto do país e com outras funções. Atrai um número surpreendente de jovens de nível universitário que contribuem como médicos, advogados, pedagogos, agrônomos, professores. Além da bandeira óbvia da Reforma Agrária e da luta ambientalista – com ênfase na agroecologia em oposição às técnicas devastadoras para o plantio e a criação de animais -, a outra “cerca” que pretendem derrubar, entre as populações pobres do interior do país, é a “cerca da ignorância”. Todos os assentamentos e também os acampamentos de beira de estrada mantém escolas para as crianças; em vários Estados, o movimento mantém programas para viabilizar que os jovens estudem em algumas universidades públicas num regime de módulos trimestrais, para não perderem o contato com suas bases. Mas o que te digo é pouco, muito pouco. Conheço pouco porque todo meu contato vem do atendimento de pacientes em análise que frequentam a Escola Nacional Florestan Fernandes, aqui perto de São Paulo. Fora da ENFF, minha única experiência foi a viagem a Sarandi, o primeiro assentamento do MST, hoje bem produtivo e estruturado, onde se deu a festa de comemoração do 25º aniversário do movimento, em 2009.

Escutar os pacientes me permite, claro, acesso a informações sobre a organização, assim como aos conflitos entre interesses individuais e coletivos mediados pelas mesmas misérias humanas de que sofremos nós, burgueses comuns: invejas, medos, ciúmes, inseguranças, paixões variadas. Não sei se o MST vai mudar o Brasil como pretende seu projeto, mas afirmo que a simples existência do MST já representa uma enorme mudança. Só que hoje, penso na desesperança e na angústia dos militantes mais pé-de-chinelo do Brasil profundo diante da brutalidade que ainda caracteriza a luta pela terra, aqui. Diante dos quatro assassinatos da última semana e da ameaça sofrida por outros pequenos líderes marcados para morrer. Diante da indiferença do Congresso Nacional. E da nossa perplexidade.

Bom, querido compa, por hoje é só. Até a semana que vem, com nossa última carta – no blog, mas não na vida. Beijos, beijos, a você e Cri. Rita.

* Na imagem da home que ilustra este post: o poeta alemão Friedrich von Schiller (1759-1805) em detalhe de tela (1793) de Ludovike Simanowitz

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