Parasitas do afeto humano

Correspondência

01.04.11

Galera

Todo perdão ao Zeca. Gosto de bichos de forma geral – elefantes mais, furões menos -, mas não tenho nenhuma habilidade para criá-los em casa. Num momento muito alterado e loucão da adolescência, comprei uma salamandra albina horrenda, numas que eu queria ter um réptil. Ela se chamava Juanita, a pequena, e morreu três semanas depois. O aquário vinha com um nó de pinho mergulhado na água, onde Juanita subia para se secar um pouco. Ocorre que o amigo da loja se esqueceu de avisar que a madeira era tóxica e precisava ser lavada todos os dias, com o risco de levar o animal à morte por envenenamento, e nessa a Juanita empacotou. Não que eu tivesse laços profundos com ela. Essas coisas levam tempo, você sabe, é preciso desenvolver uma confiança mútua, dividir experiências relevantes do ponto de vista emocional, e além do que, apesar de extremamente carismática, Juanita era também um pouco arisca, recusando-se com freqüência a comer as montanhas de coração de boi e lula congelada que ela precisava ingerir todos os dias, não atendendo a nenhuma espécie de chamado, verbal ou gestual, enfim, não fazendo basicamente nada o dia inteiro e dando um trabalho filho da puta.

Mas claro, aqui bate um coração, e só não derramei mais lágrimas por ela porque o Bruno, grande amigo até hoje, tinha acabado de chegar em casa, todo esbaforido, depois de ser assaltado na praça Oswaldo Cruz, que presta homenagem ao sanitarista mas, vai saber, tem a estátua de um Índio Pescando Com Lança no centro, e nenhuma menção ao episódio das vacinas. No folclore da família, meu avô e alguns tios teriam roubado a lança do índio, numa provável defesa simbólica e poética do grande homem que foi Oswaldo Cruz. Não é de se estranhar que meu avô viraria médico. E hoje o Índio vive rodeado de uma cerca, então vencemos. Mas enfim, Juanita morta, amigo abanando os braços e tentando me convencer a voltar à cena do crime e dar uma sova nos moleques, tente imaginar. E eu detesto brigar, e além de que nunca fui devidamente testado em campo: ou apanhei sem dó ou, numa única ocasião, dei um golpe baixo no Marcelinho, do clube, mas ninguém chegou a decidir se aquilo tinha sido uma vitória, apesar de só termos combinado que não valia soco no rosto.

Pensando bem, tive uma porrada de bichos depois da Juanita. Comprei de cara mais três salamandras, desta vez menores e de orientação comum: basicamente, três lagartixas escuras. Elas também morreram, e lembro de ter diagnosticado um câncer, mas não sei bem por quê. Quando meu pai mudou e eu fui morar na casa dele, herdei um jabuti e uma papagaia chamada Odete. O nome vinha de um sambinha esquecido, muito simpático, que o João Gilberto depois gravou: “Odete, ouve o meu lamento, lamento de um coração magoado, atende o seu pobre seresteiro, vem de novo pro terreiro, se juntar a sua gente, não ouve o seu coração que ele mente”. Seresteiro é uma dessas palavras que, junto com exegese e avuncular, eu gostaria de ter mais oportunidades de usar. A Odete agora está no Rio, com meu pai, e vai viver mais do que todos nós, como fazem os papagaios. É um animal caloroso com qualquer pessoa que não seja eu. Talvez em minha recusa a lhe fornecer café com leite, o chamado crack avícola, eu tenha ganhado uma inimiga para a vida inteira. É uma pena (olha o trocadilho), pois gosto dela e de fato pudemos desenvolver os tais laços profundos, ainda que os sentimentos fossem tão conflitantes.

Não lembro bem em que momento, mas nós compramos uma cadela. Minha única exigência foi que a batizassem de Nádia, em homenagem à companheira de Vladimir Ilich, o nosso Lênin. Era um labrador marrom, extremamente estúpido, com essa agressividade afetuosa dos cães bobões. A gente se dava muito bem, todavia procurávamos também manter certa distância, mais respeitosa do que qualquer coisa, e conquanto houvesse momentos de farra, nosso programa mesmo era ver tevê. Quando mudamos para a casa do Paraíso, o espaço ficou pequeno demais para Nádia, e ela foi com um amigo. Consta que está bem, por sinal. Mas sei que os cachorros já foram chamados de “parasitas do afeto humano” e pior, o que é uma patente injustiça. Embora eu seja egoísta demais para amar plenamente um animal, no sentido intenso que algumas pessoas vivenciam, os cachorros são criaturas admiráveis, e parte integrante de nossa evolução enquanto espécie.

Quando chegamos às cavernas, e que glória foi aquilo, tornamo-nos os primeiros animais a jogar comida fora. Nenhum moralismo na afirmação, apenas o homem era o único animal que selecionava o que comeria da caça, e jogava fora o resto. Mais ou menos como os ímpios de espírito fazem com a gordura da carne, mas não vamos entrar nesse assunto. Enfim: os homens primatas jogavam pedaços de caça na entrada da caverna, onde também havia uma fogueira (o violão ainda não tinha sido inventado, então tudo bem). Os cachorros vinham comer os restos e ficavam por ali, por conta da fogueira. Com o tempo, essa relação se desenvolveu numa simbiose, de modo que a domesticação do cachorro foi funcional, e não ornamental e religiosa, como a dos gatos. Quem me contou isso foi um amigo, o Thiago. Fiquei impressionado pacas. E faz sentido, se você pensar. Os mendigos mais idosos, que costumam ter cachorros, acho aquilo uma relação comovente e enfim, quem não gosta de cachorro.

Desculpe te aborrecer com o assunto, mas é que tive ainda outros animais, não lembrava mesmo de gostar tanto de bichos, que engraçado. Na casa do Paraíso adotamos um gato bem pequeno e todo estropiado, que apareceu um dia na garagem. Minha única exigência foi que o batizassem de Lênin, um pouco pela simetria mas também porque é um nome sonoro e de caráter revolucionário. Infelizmente, hoje seu nome é “Tinho”, corruptela de “gatinho” que minha mãe, a atual dona, usa no dia a dia. Para meu imenso pesar, ele nem mais atende por Lênin, tendo abandonado suas raízes soviéticas em prol do bem estar de uma vida pequeno-burguesa. E antes dele ainda tive outros dois gatos, veja só, não lembro bem em que época, mas eles ficaram com meu irmão quando ele saiu de casa. Essa grande migração felina trouxe um bocado de tristeza ao seio do lar, vou te dizer, e acho que compramos a Nádia logo em seguida, talvez para preencher aquele precipício afetivo que se abrira diante de nós.

Meu irmão gosta pra burro de bichos, e tem cachorros e gatos, em graus variados de simpatia e animosidade. Ele é também meu único elo com qualquer experiência remotamente semelhante a ter uma banda, e com o que você relatou (menos a viagem, tudo tem limite). Meu irmão é músico, toca uma porção de instrumentos e teve uma porção de bandas, de sonoridades diversas. Eu sempre ia aos shows, principalmente do Ecoplex, o último “conjunto” em que ele tocou, e sem dúvida o melhor. Era uma banda que só posso descrever como “de guitarra”, porque era mais ou menos isso que eles faziam. O Ecoplex tinha dois guitarristas, meu irmão e o Xan, que vinha de bandas pesadonas, e eles tocavam umas músicas intermináveis, ruidosas, cujo nexo harmônico, quando evidente, só ia surgir depois de sete minutos de barulho muito do sensacional. Acho que você ia gostar. Tenho um CD, vou ver se coloco na rede mundial.

O problema é que as melhores músicas foram as que eles começaram a tocar depois do CD, e que nunca gravaram. Sei que parece papinho, não acredito que você não comeu não sei onde, essas porras, só que é verdade. O disco é bom e tudo, mas os shows seguintes, rapaz. Primeiro porque tinha esse sujeito, o Miojo, que aparecia em todas as apresentações, e ficava berrando “ninguém é hippie”, frase que eu adaptei para “ninguém aqui é hippie”, e que é uma espécie de bússola pra mim. E fora isso, raramente eles tocavam. O mais comum era chegar com duas horas de atraso, avaliar as condições e ir embora, apenas para chatear os amigos e os fãs, que levavam a coisa toda na boa, era bonito de se ver. Quando eles tocavam – sempre descalços, para provocar o Miojo -, era com capricho e sem concessões, e se parece que eu estou romantizando, é porque você perdeu o trem do zeitgeist.

De modo que sou integralmente a favor do projeto “Lobão Tocado Direito”, vamos balançar com os alicerces dessa sociedade careta.

Mas diz aí, seus heróis morreram de overdose?

Abraços,

André

Ps. Acabo de lembrar que ainda tenho animais de estimação, as tartarugas Jacinto e Napoleão. Não vou nem entrar no assunto, porque há limites e essas coisas, mas me reservo o direito apenas de apontar que o nome Napoleão (minha única exigência etc.) não rende homenagem ao estadista francês, e sim ao gramático Napoleão Mendes de Almeida.

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