Os mortos-vivos

Colunistas

17.06.14

Quando Michaël Borremans decide pintar uma galinha, pede a um amigo que mate uma. “Sempre pintei a cultura. Nunca pintei a natureza. Mesmo quando faço uma figura humana, já é a representação da figura humana que eu quero representar. (…) Quando você mata uma galinha, ainda é a galinha que está ali mas, de certa forma, como está morta, já é também uma representação”, diz o artista belga. 

A declaração faz parte da entrevista que Borremans concedeu ao curador Jeffrey Grove para o catálogo da retrospectiva As sweet as it gets (até 3 de agosto, no Bozar, em Bruxelas – a exposição segue, em setembro, para Tel Aviv e, em março de 2015, para Dallas) e dá uma ideia não apenas do elemento sinistro no qual está mergulhada a obra figurativa desse pintor flamengo, mas também da lógica peculiar que a informa, associando representação a morte e ressureição: “É uma contradição interessante. Pinto como se tudo estivesse morto, mas o quadro está vivo, como pintura”. O curador acrescenta que Borremans põe em prática um procedimento “que parece reanimar objetos aparentemente mortos”, como se a pintura pudesse ao mesmo tempo roubar e restituir a vida.

Há vários exemplos na exposição. Podem ser os dois pardais empalhados, numerados e espetados numa parede, representados na tela 10 e 11, de 2006, também pendurada numa parede, ou uma galinha que acaba de ser degolada, mas também figuras humanas inertes, deitadas no chão ou sentadas, quase sempre com os olhos baixos. O aspecto sinistro vem da ambiguidade discreta da representação (estão mortos ou vivos?) e da incongruência ligeiramente irônica entre a representação e o título dos quadros. 

Alguma coisa está errada. Elementos cotidianos (uma máscara; um chapéu com orelhas de bichinho; uma jaqueta militar vestida ao contrário, com os botões nas costas) estão deslocados, são usados fora do lugar ou fora de contexto. Assim como, numa pintura de 2005, a figura de um homem de olhos baixos, sentado numa cadeira, recebe o título de Homem dormindo, quando tudo na sua pose indica que ele esteja acordado, nada garante que as figuras estendidas no chão não estejam mortas ou nem sejam humanas. 

Borremans prefere chamar seus modelos de figuras. Pinta bibelôs de porcelana como se estivessem vivos e gente como se fossem mortos. A estranha Cabeça falsa, de 2013, é uma grande tela na qual uma mulher nua usa a sua própria cabeça como se fosse uma máscara (o pintor diz ter se inspirado na cabeça articulada da boneca Barbie de sua filha). E assim sua pintura oscila entre a ressurreição/metamorfose de objetos e corpos inanimados e a condenação de seres vivos a um limbo onde já não se distinguem dos mortos. 

Algumas dessas figuras estão representadas por torsos interrompidos na cintura por uma mesa ou uma superfície lisa sobre a qual parecem ter sido dispostas como objetos. No filme Taking turns (“Revezando”, de 2009), essa ambivalência se perde quando se revela que uma das figuras, idêntica à outra que a manipula, tem de fato um encaixe de madeira no lugar das pernas e pode ser espetada sobre a superfície que a interrompe na cintura, numa representação que toma o caminho de um surrealismo demasiado explícito. 

Toda a obra de Borremans dialoga com a tradição surrealista de seu país. Mas, ao contrário de Magritte, por exemplo, a ambiguidade dos seus quadros não chega a se resolver num sentido encantador: o absurdo não é suficientemente explícito para chegar a fazer sentido como nonsense. 

Borremans está mais próximo de David Lynch. O surrealismo de suas pinturas está circunscrito ao aspecto sinistro da representação. O sentido é sempre dúbio, indefinido. O sentido foi ligeiramente deslocado, a ponto de criar uma sensação de mal-estar que se confunde com a beleza, mas que não chega a ilustrar um discurso prévio. Tampouco forma anedota ou alegoria. A representação interrompe qualquer conclusão, reduzindo todo discurso e toda apreensão à dúvida. 

Tudo parece clássico e convencional, mas não se sabe ao certo o que está sendo representado. É como se o surrealismo tivesse sido reduzido à impossibilidade de reconhecimento da representação. São obras que ficam no meio do caminho entre o realismo e o estranho, numa indefinição necessária para que o entendimento se interrompa antes de formar uma ideia acabada, no momento intermediário da sensação de enigma. 

No filme The Storm (2006), três negros vestidos com ternos brancos cintilantes permanecem imóveis, olhando para baixo, jogados em três cadeiras no canto de uma sala. Nada acontece além da intermitência da luz que garante a projeção da imagem. Num texto incluído no catálogo, David van Reybrouck, autor de uma história do Congo, comenta a obra, criticando por tabela a redução conceitual da arte política contemporânea: “Uma obra de arte no final das contas não é apenas um acondicionamento de matéria cognitiva, é? (…) Não dá para escrever uma legenda para uma cachoeira (…), não dá para pegar uma nuvem com uma rede para capturar borboletas”. 

Borremans se refere a seus quadros como “paisagens mentais”. São mentais, mas exigem do espectador a mesma contemplação não-discursiva que ele experimenta diante de uma paisagem. “Não faço a menor ideia de qual seja o ‘propósito’ do meu trabalho. (…) É um tipo de comunicação muito implícita e indireta”, diz o pintor. 

Por oposição à arte moderna, muito da arte contemporânea sofre hoje do cacoete de tentar dizer de maneira original o que já foi dito ou poderia ser dito por outro meio e de outra forma. Isso acaba por reduzi-la a ilustração de um discurso prévio, por oposição à afirmação não-discursiva da arte moderna. O interessante é que esse discurso, por mais provocador que seja, também a torna paradoxalmente obsoleta, já que ele é compreensível sem que a obra precise existir. A obra passa a ser apenas veículo de uma ideia que poderia ser traduzida e transmitida por outros meios. Nesse âmbito de uma arte discursiva e ilustrativa, passa a fazer todo sentido a reivindicação do curador que se sente também artista ou colaborador da obra, simplesmente por explicá-la. É assim que a arte contemporânea reitera o que o espectador já sabe ou já viu, e passa a ser uma arte da explicação e do reconhecimento. O espectador a entende e a acha original na medida em que a reconhece como uma ilustração mais ou menos engenhosa dos discursos que circulam no mundo. 

A pintura figurativa de Michaël Borremans, ao contrário, não diz, não ilustra nem explica nada; está em busca de uma “alma” que não pode ser dita nem reproduzida em outro lugar, uma “alma” que está apenas na pintura e, mais especificamente, naquele quadro, naquela representação que é ao mesmo tempo morte e ressurreição. Sua pintura não representa o mundo. É o mundo que morre e renasce com ela.

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