Marcel Duchamp como Rrose Sélavy (1923)

Man Ray

Marcel Duchamp como Rrose Sélavy (1923)

No acaso, no acidente, no aleatório

Artes

02.10.18

Marcel Duchamp faleceu há exatos cinquenta anos, em 2 de outubro de 1968, de insuficiência cardíaca, em sua casa de Neuilly-sur-Seine. Sua morte foi contida e silenciosa, bastante condizente com sua figura e sua postura como artista. Além disso, Duchamp fez questão de estabelecer como epitáfio uma frase irônica, que permite a ressonância de suas ideias anárquicas sobre arte até hoje: “D’ailleurs, c’est toujours les autres qui meurent” (algo como: ademais, são sempre os outros que morrem).

Tal humor verbal, feito de paradoxos e trocadilhos, é típico de Duchamp. O teor jocoso do epitáfio, misturado ao evento trágico por excelência – a morte –, faz pensar de imediato no readymade de 1919, uma das peças mais conhecidas do artista, que mostra a Monalisa com bigodes. O título posto por Duchamp, L. H. O. O. Q., se lido rapidamente em francês, é o equivalente fonético da frase “Elle a chaud au cul”, “ela tem fogo no rabo”. Mais uma vez, o humor verbal se articula, indissociavelmente, ao aspecto sério da tradição, das referências (Da Vinci, o Renascimento etc).

Outro readymade bastante conhecido de Duchamp voltou recentemente às manchetes, reforçando a ideia de que sua presença segue pairando nos ares culturais ainda hoje. Trata-se de A fonte, o urinol de porcelana que ele teria posto de cabeça para baixo e transformado em “obra de arte”. A “autoria” do urinol tem sido debatida há anos, por mais paradoxal que seja falar de origem, criação ou autoria no contexto de uma obra pensada justamente para questionar tais categorias. Quem comprou o urinol? Quem escreveu o pseudônimo “R. Mutt” na porcelana? Quem inscreveu a peça na exibição da Sociedade de Artistas Independentes? Como “artistas independentes” podem formar uma “sociedade”?

Alguns pesquisadores apontam o urinol como ideia de Elsa von Freytag-Loringhoven, artista dadaísta estabelecida em Nova York falecida precocemente em 1927 e intimamente ligada ao círculo de Duchamp e Man Ray. Josh Jones, escrevendo para o Open Culture, oferece um panorama detalhado dessa polêmica, que envolve inclusive uma carta do próprio Duchamp indicando o caráter difuso da autoria do urinol.

Uma coisa que permanece certa, sem margem de dúvida, é a influência de Duchamp no imaginário contemporâneo. Sua investida irônica contra a seriedade da arte e de seus processos foi fundamental para a arte contemporânea ainda durante sua vida – e desde 1968 tal processo só se intensificou. São traços que compartilha com artistas como John Cage, por exemplo, no campo da música; o coreógrafo Merce Cunningham; ou ainda outros artistas visuais, como Robert Rauschenberg e Jasper Johns.

São artistas de duas a três gerações posteriores à de Duchamp que complexificaram sua peculiar proposta artística: ou seja, a arte se faz também no acaso, no acidente e no aleatório. Existe na poética de tais artistas – e de posteriores que seguiram suas intuições, como Guillermo Kuitca – um esforço de retirar o peso excessivo de noções como criatividade/criação, obra e autoria.

A expansão das ideias e intervenções de Duchamp sobre o campo artístico alcança também a literatura. Em ensaio recentemente traduzido no Brasil, Sobre a arte contemporânea (Zazie Edições, disponível na íntegra no site da editora), o escritor argentino César Aira escreve: “encontrei nas derivas da Arte Contemporânea uma fonte incomparável e inesgotável de fantasias produtivas, e isso desde o primeiro contato, que tem data”. Tal primeiro contato foi justamente com Duchamp: “Foi no ano de 1967, quando comprei em uma livraria de Buenos Aires o livro Marchand du Sel, primeira reunião dos escritos de Marcel Duchamp feita por Michel Sanouillet”.

Aira escreve que “o feitiço de Duchamp” o livrou de sua ambição juvenil de “escrever até gastar os dedos, dizer coisas inteligentes, importantes, ser poeta, ensaísta, ganhar o Prêmio Nobel”. Havia a possibilidade de ser artista sem passar pelo modelo burguês da autoridade e da solidez de opiniões e posições. E Aira completa:

O que parece ter sido revelado, por meio daquele folheto transparente, foi a inutilidade de escrever livros, mesmo amando-os como eu os amava, ou precisamente porque os amava.

A percepção de Aira não é isolada – ele não foi o primeiro nem será o último a reivindicar Duchamp como um precursor. Graciela Speranza publicou um livro dedicado exclusivamente a isso, Fuera de campo. Literatura y arte argentinos después de Duchamp, de 2006 (editora Anagrama), no qual analisa artistas como Borges, Cortázar, Manuel Puig e Ricardo Piglia. Em Maria com Marcel: Duchamp nos trópicos (editora UFMG), por exemplo, Raúl Antelo amplia o escopo da presença de Duchamp para dar conta não apenas da Argentina (os meses que Duchamp passou em Buenos Aires entre 1918-1919), mas também do Brasil, mostrando de forma detalhada sua relação com a artista Maria Martins (1894 – 1973).

Muitos dos livros já canônicos sobre Marcel Duchamp (como Les TRANSformateurs Duchamp, de Lyotard, ou Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza, de Octavio Paz) já enfatizam a produtividade de sua obra não só para as artes visuais, mas para o campo cultural como um todo. O próprio Duchamp, em suas inestimáveis conversas com Pierre Cabanne (Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido, editora Perspectiva), enfatiza como certas leituras foram fundamentais para sua poética, especialmente Jules Laforgue e Mallarmé.

Diante de todo esse percurso, a figura de Duchamp ainda assoma como uma espécie de precursor benigno. É evidente que, por mais disseminada que seja sua presença, exista um movimento contrário de resistência – por um retorno à seriedade e ao compromisso também no campo da arte. Como escreve Aira em sua evocação de Duchamp, a intensidade de sua invenção gera “uma atomização que se parece a uma liberação”, com “um espaço de manobras de uma amplitude nunca vista antes (…) Não há mais Picassos nem a angústia das influências”.

Com Duchamp (e a partir dele, mas em direção também ao passado), a tradição pode ser vista como um “espaço de manobra”, ou seja, um espaço ventilado, receptivo aos deslocamentos e às transformações. Aira poderia ter acrescentado: são sempre os outros precursores que morrem

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