As imagens da exposição The Bride and the Bachelors Duchamp with Cage, Cunningham, Rauschenberg and Johns utilizadas neste post por cortesia da Barbican Art Gallery são de Felix Clay (© 2013).
A carreira de pintor de Marcel Duchamp terminou cedo, logo aos 25 anos. Nessa época o aspirante a pintor frequentava as reuniões dos artistas de Puteaux, bairro nos arredores de Paris onde Marcel tinha ido morar seguindo os passos dos dois irmãos, Raymond Duchamp-Villon e Jacques Villon. Com uma diferença de 12 e 13 anos para Marcel, os mais velhos eram como mentores do jovem, e também líderes da turma que se formava com a intenção de ser a vanguarda da vanguarda. O Grupo de Puteaux tinha a proposta de ir além das pesquisas cubistas, pois para seus membros, entre eles Jean Metzinger, Albert Gleizes e Robert Delaunay, o cubismo poderia ser ainda mais socialmente engajado do que propunha Picasso e mais radicalmente intelectual do que queria Braque. Esse objetivo poderia ser alcançado com tardes de discussões, trocas de experiências e o auxílio de pesquisas sobre disciplinas que até então não se misturavam ao reino da arte pariense, como a matemática. Foi neste contexto amigável que o mais novo dos Duchamp adquiriu mais confiança para uma investigação artística própria e levou adiante a ideia de uma “pintura a serviço da mente”.
No começo de 1912 o grupo de Puteaux estava em alvoroço, pois Metzinger e Gleizes, porta-vozes do grupo na época, estavam na comissão julgadora do Salon des Indépendants que aconteceria em março. Marcel Duchamp, por sua vez, tinha finalizado em janeiro o seu Nu descendo uma escada, pintura resultante de um longo estudo sobre a apresentação do movimento como uma capacidade cerebral. Um nu mecânico, tão pouco libidinoso mas ao mesmo tempo muito provocativo, que instigava a percepção e ao mesmo tempo fazia toda a história da arte, desde o torso clássico grego, descer alguns degraus de seu patamar elevado. Resumindo, uma pintura muito de vanguarda até para quem queria ser mais que a vanguarda. Os manda-chuvas de Puteaux caíram para trás ao ver a obra e acreditaram que era uma troça sobre toda a estética que estavam almejando popularizar. Assim, insistiram para que os mais ilustres e adultos irmãos de Duchamp pedissem que o caçula ao menos mudasse o título da obra. Marcel Duchamp não respondeu nada aos irmãos. Pegou o quadro, colocou debaixo do braço e foi embora.
Para o artista, esta decepção ocasionou uma reviravolta, pois a partir desse momento se viu livre de qualquer relação com movimentos de arte em geral. Falando sobre o assunto com o crítico Pierre Cabanne, Duchamp afirmou: “Isso frustrou-me tanto, tal comportamento vindo de artistas que eu acreditava serem livres, que como reação eu fui procurar um emprego e me tornei bibliotecário”. O polêmico Nu descendo uma escada conseguiu a desforra, sendo o sucesso do Armory Show em Nova York no ano seguinte e, embora tenha abandonado oficialmente a pintura, Duchamp chegou a produzir outros (não muitos) quadros algum tempo depois. Esse sentimento de liberdade que Duchamp tanto valorizava e que o fez romper com convenções, contudo, é a gênese do pensamento que permeou outras instâncias de sua vida e legado artístico.
Com o desfecho da história do pintor começou a história de um dos mais importantes artistas do século XX e, na opinião de muitos estudiosos (inclusive na minha), quiçá o mais importante artista, que foi também um influente pensador e pioneiro no campo da curadoria. É deparando-se com o Nu descendo uma escada (nº 2) que a exposição The Bride and the Bachelors Duchamp with Cage, Cunningham, Rauschenberg and Johns se inicia. A grande mostra é uma ode ao que podemos chamar de arte pós-Duchamp e coloca lado a lado as criações dos artistas acima citados, contextualizando as marcantes influências que Marcel Duchamp exerceu nas mentes das gerações seguintes.
Além do famoso Nu, a exposição no Barbican de Londres traz também uma réplica do Grande Vidro ou A Noiva despida por seus Celibatários, mesmo, obra cujo título da exposição, que é parte do festival Dancing around Duchamp, faz referência. Na galeria de arte, dançando ao redor da “noiva”, estão as obras dos americanos Jasper Johns, Robert Rauschenberg, John Cage e Merce Cunningham. Esses dois últimos, apresentados ao público no ritmo de suas criações.
No centro da galeria foi montado um palco para as coreografias do ícone da dança contemporânea, Merce Cunningham. As composições do músico experimental John Cage também são onipresentes no espaço. Há dois pianos de calda disklavier (uma espécie de pianola hi-tech) programados para tocar as partituras de Cage, além de outras experiências sonoras. Legendas nas paredes se iluminam para indicar o que está sendo ouvido. Durante a visita ainda se pode presenciar uma equipe de bailarinos entrar em cena para dançar os movimentos concebidos por Cunningham.
Jasper Johns está presente na exposição com 17 trabalhos entre pinturas e esculturas, incluindo alguns exemplos da série Painted Bronze da década de 1960, que pode ser entendida como o reverso do ready-made. São reproduções esculturais de objetos cotidianos, como latas de cervejas tipo ale e a latinha de café usada para guardar pincéis, remodeladas fidedignamente em bronze fundido e pintadas à mão. Johns era tão próximo a Duchamp que, após a morte deste, escreveu: “A comunidade da arte sente a presença de Duchamp e a sua ausência. Ele mudou a condição de estar aqui”. O parceiro de Johns, e também pioneiro da Pop Art, Robert Rauschenberg é representado por cerca de 20 trabalhos, em sua maior parte das décadas de 1950 e 1960. No extremo oposto da galeria, em direção ao Nu de Duchamp, encontramos Express, de 1963, em que Rauschenberg usa a técnica de serigrafia sobreposta para mostrar alpinistas, dançarinos e jóqueis ecoando o movimento da derradeira pintura de Duchamp. Junto das telas e de alguns objetos, como Music Box (1953), foi remontado o primeiro cenário que Rauschenberg projetou para a companhia de dança de Cunningham.
A curadoria é de Carlos Basualdo, cuja seleção de obras está mais fluida no andar de baixo. O mezanino traz seções mais definidas, com temas como xadrez, ready-made e o acaso. O curador argentino contou com a colaboração do artista e cineasta francês Philippe Parreno, responsável pela mise en scène da exposição. Conceberam toda a mostra como uma atmosfera única e interligada, tirando proveito da arquitetura aberta do espaço. Reproduziram cenários – não só o de Rauschenberg, mas é possível também encontrar adereços cênicos baseados no Grande Vidro da performance Walk-Around de Cunningham – que provocam efeitos de transparência, sombras e luz.
A exposição traz uma montagem também pós-Duchamp, muito próxima ao que o artista imaginou para as exposições organizadas por seus amigos surrealistas, com uma estratégia curatorial que coloca o layout da mostra refletindo as estruturas internas das obras expostas. Duchamp, em 1938 e 1942, já tinha testado a colocação de pinturas em portas giratórias, a construção de labirintos de fios de barbantes para o público ultrapassar e até a distribuição de lanternas para os visitantes enxergarem obras em uma sala escura com sacos de carvão pendurados no teto.
A experiência revela-se um modelo que poderia ser repetido em outras ocasiões, com diferentes artistas, pois a herança do homem que nutria uma paixão pelo xadrez pode ser reconhecida na produção de muitos nomes de gerações posteriores, que também incluíram elementos lúdicos e provenientes do acaso em suas obras. No caso específico desta dança em torno de Duchamp, expor as origens de seu pensamento e seus desdobramentos em artistas que foram seus contemporâneos, de maneira tão direta, foi uma grande sacada. Digna da homenagem a um pintor que preferiu o jogar além do seu tempo.
* Caroline Menezes é jornalista e crítica de arte, doutoranda em Teoria da Arte pela University of the Arts London.