Elvis Almeida/Divulgação

O artista Elvis Almeida

Ana Branco

O artista Elvis Almeida

O maior pintor do Brasil

Artes

16.03.17

Provocou inveja e amargura, em certo meio mais do que restrito, a declaração de Luiz Zerbini de que Elvis Almeida seria “no momento, o maior pintor do Brasil”. Zerbini, para quem não sabe, é ele próprio forte pretendente ao título – aclamado como artista desde a década de 1980 e dono de uma produção pictórica que vem se renovando ao longo desse início de século XXI. O meio em questão, para quem vive fora dele, é o dos artistas plásticos brasileiros e, em especial, dos que têm na pintura sua forma de expressão habitual. O comentário de Zerbini conseguiu desagradar tanto a artistas veteranos, que se acharam preteridos, quanto a outros mais novos, que gostariam de ter sido alvo de um elogio tão público. Melhor dizendo: público, em termos. A frase começou a circular no final do ano passado como singelo post de Facebook, no qual Zerbini divulgava uma obra de seu assistente, Almeida, que então encerrava uma exposição individual na Galeria Mercedes Viegas, no Rio de Janeiro. Disseminou-se para além do âmbito das redes sociais por conta de uma matéria no jornal O Globo, em 8 de janeiro de 2017, de autoria de Josy Fischberg, intitulada “Nova promessa no mercado de arte contemporânea”. Com isso, a declaração se tornou pública e se converteu em moeda de troca.

Compete afirmar, de saída, que Zerbini tem direito à sua opinião. Sob circunstâncias normais, seu comentário não seria nada mais do que isso: o juízo de um artista maduro sobre outro mais jovem. Coisa corriqueira na história da arte, artistas se elogiarem uns aos outros, seja por admiração sincera ou por amizade ou por estratégia. Por conta da cobertura jornalística dada ao fato, porém, o mero elogio se transformou em caso de invenção de uma reputação. Perante o retrato do jovem enquanto artista estampado no segundo caderno de um dos poucos jornais de repercussão nacional, a pergunta passa a ser: quem é Elvis Almeida? Aviso aos leitores: o presente texto não pretende entrar minimamente no mérito dessa questão. A essa altura do jogo mercadológico, quem quiser conhecer a obra do artista não terá dificuldade de fazê-lo. A fogueira das vaidades está acesa, e a atual contribuição tardia ao debate só deverá servir como lenha.

Divulgação

Elvis Almeida, Sem título

O que se quer discutir aqui é outra coisa: a quem serve esse processo de lançar uma nova promessa? Longe de veicular apenas o elogio descuidado de um artista a outro, o episódio citado alimenta um sistema que já esgotou qualquer possibilidade de contribuir de modo positivo para a criação artística e, ao contrário, ameaça soterrá-la sob os imperativos de um mercado cada vez mais mercenário. Junte-se aos autos, como prova dessa acusação, artigo de autoria de Daniel S. Palmer publicado na revista ArtNews, em março de 2016. À época em que escreveu, Palmer era curador assistente no Jewish Museum de Nova York e, pouco depois, assumiu o posto de curador associado do Public Art Fund, organização sem fins lucrativos dedicada à promoção da arte pública na mesma cidade. Sua crítica à “hiperprofissionalização do artista emergente” vem de dentro de um meio artístico diversificado e segmentado, no qual o autor está situado na parte que não mantém vínculos diretos com mercado e galerias (noves fora as relações comerciais da revista em que o artigo saiu).

A essência do argumento de Palmer é de que o mercado de arte está exacerbando a valorização precoce de artistas novos de modo proposital e especulativo. Ele identifica a origem disso na presença cada vez maior de colecionadores e marchands oriundos do mercado financeiro, os quais não hesitam em adotar estratégias de insider trading – como, por exemplo, fomentar a compra maciça de determinado artista para simular demanda e fazer subir o preço de suas obras – e costumam tratar a arte como simples valor mobiliário, um instrumento financeiro como qualquer outro. O resultado seria uma enxurrada de reputações inflacionadas e jovens talentos cujo amadurecimento artístico é sacrificado no altar do sucesso fácil. Para sustentar seu argumento, o autor cita exemplos anedóticos bem distantes da realidade brasileira: artistas recém egressos da faculdade que já contam com sofisticado esquema de assessoria comercial, jurídica e de imprensa; sites que arrolam artistas como oportunidades de investimento, como se fossem ações, e chegam mesmo a se referir a certos nomes como blue chip, numa atitude crua e deprimente de mercadejo.

É claro que a velha bolsa de apostas existe desde muito no mundo das artes. Mesmo no mercado brasileiro, relativamente acanhado, faz tempo que a compra e venda de arte vem se profissionalizando. Isso não é necessariamente ruim. Artistas precisam ganhar a vida; e galerias, feiras de arte, leiloeiros fazem parte de um sistema de validação e troca do qual quase ninguém escapa no panorama econômico vigente. No entanto, até os defensores mais veementes do mercado admitem que acontecem exageros e abusos. Duas distorções que Palmer identifica no contexto nova-iorquino são a predileção por artistas masculinos e pela pintura, um tipo de trabalho que atrai colecionadores em razão desproporcional à importância que ocupa para a maior parte dos que pensam a arte contemporânea. Como suporte mais do que consagrado em matéria de comércio e coleção, o quadro na parede retém valor monetário singular.

Por mais que proceda a crítica de Palmer, não é tão simples manipular o mercado quando existe uma grande diversidade de agentes, grupos e instituições competindo entre si para ditar rumos e impor tendências. Nos grandes centros mundiais de arte, ocorrem disputas abertas e conflitos às vezes brutais. Uns ganham, outros perdem. Quando o meio é menor e mais frágil, a consagração de nomes resvala com maior facilidade para a ação entre amigos. No convívio artístico brasileiro, quase todos se conhecem, e muitos são vinculados por laços explícitos de parentesco, matrimônio, consórcio e camaradagem. Chega a prevalecer certa falta de cerimônia no modo como os convivas ocupam seus lugares à mesa. Jornalistas viram críticos de arte. Críticos de arte viram curadores. Curadores viram galeristas. Galeristas viram colecionadores. Colecionadores viram diretores de instituições culturais. Todos trocam de cadeira conforme lhes convém. No país do compadrio e da troca de favores, não haveria de ser diferente nas artes plásticas.

Jewish Museum

O curador Daniel S. Palmer

Apesar das peculiaridades que distinguem Rio/São Paulo de Nova York, Zurique ou Hong Kong, a busca pela última “nova promessa no mercado de arte contemporânea” obedece a uma lógica únivoca. Pouco surpreende que ela nos oferte, aqui e agora, o mesmo produto que está em alta lá fora: um jovem pintor. O processo de manipular valores com vistas ao lucro de curto prazo é bem parecido em todos os lugares, descontadas as diferenças de estilo e aparato. No quesito formação de cartéis, aliás, nossa velha cordialidade oligárquica antecede à evolução mundial do crony capitalism, nas últimas décadas, e se junta a ele como a fome com a vontade de comer. A especulação sem risco é sinal dos tempos. Hoje em dia, ninguém esquece de combinar com os russos. Nem mesmo os americanos. O mercado de arte global, em vez de se tornar mais confiável e transparente com a passagem do tempo, como era de se esperar de um meio em que se lida com investimentos, caminha a passos largos para virar reserva técnica de paraíso fiscal.

A veiculação do elogio de Zerbini incomoda porque deixa à mostra as engrenagens de um mecanismo cada vez mais desgastado. Uma troca de gentilezas, por si só inocente, acaba sendo cooptada para fins interessados. Sem que haja necessariamente qualquer conluio. Nem precisa. A confluência de interesses já é tão grande que dispensa conspirações. Diante da lógica de mercado segundo a qual o valor só existe para ser realizado como lucro, as boas intenções rapidamente se adulteram em bons negócios. A existência de nova promessa é notícia; e a própria notícia é a prova da nova promessa. Diante dessa lógica circular, toda ingenuidade se coloca a serviço da desfaçatez. Quando mídia e mercado se juntam para pautar as discussões artísticas, o que está sendo alijado do processo é o debate crítico. Se isso ocorre com certa facilidade, é porque existe um consenso, pelo menos tácito (quem cala, consente), de que não interessa a ninguém denunciar que o jogo é de cartas marcadas.

A aposta no artista emergente como mercadoria pode ser boa para o artista – ou não, conforme atestam antigas novas promessas esquecidas – mas é quase sempre ruim para o meio que o gerou. Não se constrói um firmamento artístico com duas ou três estrelas cadentes. Uma parte da solução, conforme indica o artigo de Palmer, passa por maior rigor das instâncias de validação e legitimação. Instituições fortes e debate vigoroso. A velha separação de poderes e o bom equilíbrio de forças, tão essenciais a qualquer sistema representativo. É uma receita eficaz para coibir não somente a hiperprofissionalização, objeto da denúncia do autor americano, como também a falta de profissionalismo que ainda assola o processo de consagração artística no Brasil. Em ambos os casos, está mais do que claro que o mercado de arte não tem a capacidade de se autorregulamentar.

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