Maggie Nelson, autora de Argonautas

Maggie Nelson, autora de Argonautas

Escrita, nomadismo e queer

Filosofia

25.09.17

A princípio haveria uma oposição entre a fixidez da palavra vertida sobre o papel – ou a tela – e a movência constante do nomadismo. Se o nômade é aquele que peregrina no desconhecido, a escrita tenderia à permanência, à sedimentação de um sentido apesar do tempo transitório. Palavras impressas guardam a memória, apreendem e estabilizam o ser de um momento específico. O nômade tem um compromisso com a permanência da mudança.

Susan Sontag, em sua Entrevista completa à revista Rolling Stone (Jonathan Cott, tradução de Rogério Bettoni, ed. Autêntica, 2015), aponta essa (apenas aparente) contradição entre escrita e mudanças constantes. “Sinto que estou mudando o tempo inteiro, algo difícil de explicar (…). Quer dizer, escrevo em parte para mudar a mim mesma, de modo que não tenha que pensar sobre alguma coisa depois de escrever sobre ela. (…) Então falar da obra fica um pouco difícil por causa disso – quando as pessoas querem conversar sobre a obra, eu já estou em outro lugar”.

Usar a escrita como subterfúgio de rebeldia e de ser outro, como uma pele da qual poderíamos nos despir – não sem algum investimento, sem perda, sem ganho. Secretar e sedimentar uma roupa para então se desvencilhar dela. Não no sentido que Judith Butler critica como leitura equivocada de seu Problemas de gênero, como se fosse possível “levantar de manhã, abrir o armário e decidir de qual gênero quero ser naquele dia”, mas no sentido da performatividade que, pela repetição e reiteração mutantes, cria fissuras e irrompe em novos entendimentos, novas experiências e, novas direções de autorreferência. Como penso a mim mesma com a escrita e apesar dela, como uso a linguagem para dizer o que ela ainda não pode dizer e o que ainda não sei.

É interessante pensar o relato ensaístico que a poeta e crítica Maggie Nelson desenrola em Argonautas (tradução de Rogério Bettoni, ed. Autêntica, 2017) a partir dessa relação. Seu livro, em torno de identidades, amor, prazer e família, começa fazendo considerações sobre a capacidade de expressão da palavra. “Antes de nos conhecermos, passei a vida acreditando que o inexpressável está contido – inexprimivelmente! – no expressado, como dizia Wittgenstein”. No modo de justaposição que Nelson investe nesse livro, algumas vezes aleatória e em outras intuitiva, a menção ao inexprimível das palavras surge após a descrição de uma cena de sexo anal no chão do banheiro.

Essa justaposição aponta para algo não nomeado no livro: a relação entre a fluidez das identidades de gênero – e a necessária abordagem de vivências não normativas – e a tentativa de exprimir o inexprimível em palavras. O uso da escrita como caminho de demarcação de descobertas, de fluidificação de fronteiras, de rupturas com o conhecido e familiar, de sedimentação de processos, de ultrapassamento, de novas iluminações, de intuições esparsas, de associações que vêm e vão, que retornam e lançam luz sobre uma memória guardada ao lado de uma consideração filosófica sobre a mulher, o amor, o sexo, o gênero fluido.

E surge aí a imagem de Argo, a embarcação da mitologia grega, cujas partes são alteradas durante a jornada dos argonautas em busca do velocino de ouro sem, contudo, ter seu nome alterado, semelhante à “tarefa do amor e da linguagem [que] consiste em dar a uma mesma frase inflexões sempre novas”. A escrita como subterfúgio para evidenciar a movência de uma forma fugidia, que parece se manter, apesar de mutações constantes.

No livro, um misto de relato, ensaio, escrita memorialista, “autoteoria” e autobiografia, é interessante acompanhar como a fluidez da identidade de gênero e a ousadia das ponderações sobre sexo e família flutuam ao longo das páginas e conformam considerações que envolvem uma análise das teorias de gênero e de sua vivência queer numa família heterodoxa. Ela despe pelas palavras sua autopercepção de prazer sadomasoquista e apresenta sua relação com Harry Dogde, uma pessoa de gênero fluído, identificada como butch e que, no mesmo período em que Nelson se prepara para engravidar através de inseminação artificial, começa sua transição de gênero, com mastectomia e testosterona. Acompanhamos na intimidade os ritmos opostos da transformação de seus corpos, a mulher que se torna mãe e a butch que se torna homem Assim como se movem as palavras, também se movem as considerações e identidades. Não há angústia com o que não se fixa.

Pouco importa a direção em que transitam as palavras, o importante é que transitam. Como a nau Argo, o traçar das linhas em navegação não necessariamente desenvolve uma sequência coerente de causalidade. Nas justaposições é possível apostar na relevância particular dos fios soltos, na capacidade do leitor de compreender além das costuras evidentes, apostar que nem todo sentido precisa ser exposto de modo argumentativo, que aquilo que importa permanece apesar de toda mudança.

Persiste, contudo, uma ambiguidade: a nau Argo é a mesma apesar de todas as transformações. Suas partes são alteradas, algumas extraídas, outras acrescentadas, o nome atravessa o tempo, alheio. No meio disso tudo, a grande jornada. Na mitologia, a grande jornada por algo que se perdeu. Na escrita de Barthes, a reiterabilidade da declaração de amor, nunca a mesma. No relato de Nelson, o nomadismo da escrita que reverbera a rebeldia das identidades que não se entendem como normativas nem se almejam como algo a ser justificado, com tendência a se estabilizar e se manter o mesmo, indubitável, conhecido.

Se a referência da autora a Barthes é pela reiteração de uma declaração de amor, que nunca é a mesma apesar da repetição, essa referência reforça ao mesmo tempo a própria incapacidade da linguagem de expressar algo de uma vez por todas. Vale lembrar que Roland Barthes fala da Argo e dos amantes em sua autobiografia Roland Barthes por Roland Barthes, numa passagem intitulada “o trabalho da palavra”. Poucas páginas antes, Barthes especula sobre “o fracasso do desejo sob o excesso de sua afirmação”.

Maggie Nelson trabalha com o indizível da experiência e o avesso das palavras – as costas do exprimível. Aquilo que se apresenta diante de nós e que, ainda assim, não é possível ver com clareza. Aquilo que não é óbvio ou conhecido, estranhamente próximo, mas raramente reconhecido em público como tal. Por mais que a vida esteja tão próxima à pele, é impossível dizê-la.

Se, em seu ensaio, Sontag coloca a necessidade de uma erótica das artes onde antes abundava a hermenêutica, o que Nelson quer não é uma metáfora, hermenêutica ou erótica, do ânus. “Estou interessada em dar o cu”. Há também um gozo de enxergar a subversão da escrita na contribuição das palavras em implodir a normalidade, pois ela também pode construir e despir máscaras, revelar e descarar personas, reconhecer, reconhecer e reconhecer estados de identidades sempre em construção, moventes.

É preciso permitir a emergência do estranho (queer) em si, daquilo que corre por fora da normalidade e da linguagem, mas também (e sobretudo) fissurar as bordas do conhecido. Mas se o que diz Wittgenstein é que “o inexpressável está contido – inexprimivelmente! – no expressado”, as palavras seriam boas o suficiente ou não? Algumas delas, talvez, em sua capacidade de servir como guarda-chuva, de abarcar sem nivelar uma ampla gama de possibilidades, ao conter o diverso sem pasteurizar.

“De um jeito bem literal, seu paradoxo [o inexprimível no expressado] define por que escrevo, ou por que me sinto capaz de continuar escrevendo”, diz Nelson. Ou “confiar na minha pele”, diz Sontag, para quem “é corruptor escrever com o intuito de moralizar as pessoas”. Que essa escrita tenha o queer como fio condutor revela tanto a rebeldia do inexprimível das palavras quanto a capacidade de certas palavras (como queer) de abarcar uma diversidade abrangente, nada homogênea. “Quando nomeamos alguma coisa, você disse, nunca mais a vemos do mesmo jeito. Tudo que não podemos nomear se desfaz, se perde, morre”, relata Nelson a respeito de Harry. Eve Kosofsky Sedgwick, por sua vez, faz do termo queer uma torção para caber tudo o que é fugidio, “um meio de afirmar e ao mesmo tempo esquivar”.

A rebeldia da escrita torna-se ainda mais indomável quando se mistura um viés poético com uma escrita ensaísta e analítica. Se a poesia é o espaço de torcer a linguagem para aquilo que ela ainda não aponta, não agarra e não apreende, misturar poesia ao cotidiano seria permitir essa queerness específica da existência. Estaríamos aqui como a nau Argo, cuja causa não é outra senão o seu nome, cuja identidade é senão a sua forma, transmutante.

E aqui estamos impulsionados a querer o avesso da palavra, aquilo que a linguagem, mesmo dizendo, não pode dizer. Reconhecer que ao dizermos haverá sempre um fundo que não se diz. Que esse fundo pertença tanto ao avesso da linguagem quanto aos desconhecidos da própria existência é a pérola que o trabalho traz à superfície: que a escrita, apesar de ferramenta para demarcar ou evidenciar o nomadismo, será sempre insuficiente diante da movência do que existe. As palavras se movem, os sentidos se alteram, as peles, os gêneros e os sexos se desdobram de um jeito particular, inaudito.

Esse nomadismo da identidade a partir da escrita – ou apesar dela – poderia nos revelar ainda uma mutação de mentalidades, se pensarmos com as ideias de Paul Zumthor e Hans Ulrich Gumbrecht a respeito da transição entre o Medieval e a Idade Moderna. Para Zumthor, um medievalista suíço que além de poeta e pesquisador teve, ao seu modo, uma existência nômade, a movência da forma vem da voz e da poesia oral, enquanto a escrita tende à estabilidade de um discurso. O desejo por uma estabilidade de sentido indubitável, coerente com a intenção do autor, seguida por uma leitura que manteria fidelidade ao sentido almejado, é algo típico do nascimento do sujeito moderno, de uma mentalidade cartesiana que herdamos.

Se o nomadismo da poesia e a fixidez da escrita apontavam direções opostas no século XV e, com maior evidência a partir do século XVII, os modos de vivências queer de fins do século XX e deste nosso presente século mostra que a movência é tudo o que importa – com ou sem a escrita, passando pela linguagem e encarnado pela vivência dos corpos. “As palavras mudam de acordo com quem as fala; não há remédio para isso”.

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