O filósofo Alva Noë

O filósofo Alva Noë

Atividade organizada

Filosofia

31.07.17

Publicado no segundo semestre de 2015, Strange Tools (ainda sem tradução para o português) é o livro mais irregular de Alva Noë. Se falha em apresentar um texto mais rigoroso, porém, a provocação que oferece é bem-vinda. Quando Noë pensa de forma um tanto tortuosa, ainda assim pensa melhor do que a maioria.

Em poucas páginas — quando se considera a amplitude do tema —, partindo da natureza humana, o filósofo norte-americano procura explicar a arte e os mecanismos pelos quais ela se transforma continuamente. Os argumentos não são, digamos, inéditos. Professor de filosofia da Universidade de Berkeley, Califórnia, Noë encontrou uma maneira curiosa de conciliar, entre anuências e refutações, uma bibliografia excelente e porralouquíssima. Ligado às ciências cognitivas, Noë rejeita, aqui, a perspectiva da biologia evolutiva e da neurobiologia. Para ele, a arte não tem qualquer função na adaptação e na continuidade da espécie.

Vamos lá. Alva Noë compreende que arte e filosofia são coisas distintas, mas diz que ambas se preocupam com a maneira pela qual estamos organizados.

Para desenvolver o argumento principal de Strange Tools, Noë recorre à definição de atividade organizada. A amamentação, representada ao longo da história da arte em obras de inspiração religiosa, é o exemplo escolhido. Seis características, diz o autor, distinguem uma atividade organizada. 1. É básica e biológica. 2. Ainda que seja básica e biológica, envolve o exercício de habilidades cognitivas sofisticadas. 3. É estruturada no tempo. 4. Não pode ser controlada individualmente. Nem a mãe nem o bebê regulam a amamentação, diz Noë. A mãe tem mais poder, mas a dinâmica se assemelha a uma troca, uma negociação. 5. Tem uma finalidade. Além da função mais básica, a amamentação fortalece o vínculo entre mãe e filho. 6. Finalmente, pode ser prazerosa.

Partindo das células, tecidos, órgãos e sistemas do corpo humano e desaguando em estruturas sociais, Alva Noë defende que a organização é nossa condição biológica. Note que pare ele não há distinção entre o natural e o adquirido. É da nossa natureza, diz, adquirir segundas naturezas. Da pedra polida ao banco de dados eletrônico, é impossível conceber nossa vida sem ferramentas. Nós pensamos e nos organizamos a partir de e em torno delas. Obras de arte seriam strange tools, ferramentas estranhas. Se a tecnologia serve a certos fins, a arte, ainda que pressuponha o uso da tecnologia, questiona esses fins. A arte oferece “revelação, transformação, reorganização”, colocando em xeque “valores, regras, convenções e premissas que tornam possível o uso da tecnologia em primeiro lugar”.

Há dois níveis, portanto. As atividades organizadas ocupam o primeiro deles. No segundo, ao qual pertencem tanto a arte quanto a filosofia, a natureza da organização é exposta e investigada. As práticas de segundo nível reformulariam as do primeiro, no que Noë chama de looping structure.

Pense na dança. A dança é uma atividade organizada que reúne as seis características listadas pelo autor. O fato de ser cultural — dançamos em cerimônias e ocasiões específicas — não basta para que se possa alçá-la ao segundo nível, ou seja, ao da arte. A forma artística da dança é a coreografia. Looping structure, então: a coreografia contamina e transforma o modo como dançamos, que torna a contaminar e transformar a coreografia.

Qualquer forma de percepção é uma atividade organizada. Pense, por exemplo, na visão. No início do livro, Noë sugere que há duas maneiras distintas de compreender o ato de enxergar. Na primeira delas, a questão é saber como é possível ver tanto quando dispomos de um mecanismo tão precário. É a posição científica, aquela que acredita que o cérebro não faz mais do que traduzir ou gerenciar imagens captadas pela retina. Na outra, a questão é saber como vemos tão pouco se há tanto para ser visto. Base de todo o trabalho de Alva Noë (Out of Our Heads, Action in Perception), a segunda posição parte do princípio de que enxergar não é algo que ocorre automaticamente, mas algo que realizamos. E, como tudo aquilo que realizamos, está subordinado ao aprendizado e ao manejo de certas habilidades.

Mais antiga do que se supõe, a tradição pictórica modifica a maneira como vemos o mundo e a nós mesmos. Quando olha para uma pintura ou uma fotografia — e também quando escolhe uma roupa em frente ao espelho —, você se esforça para ver o que de outra forma, imerso em tarefas rotineiras, poderia passar despercebido. Isso requer um tipo especial de atenção e comprometimento, mas não só. Outros valores estão envolvidos na equação. “Os efeitos da arte não são imediatos. […] As respostas à arte são sempre perturbadas pela crítica, pelo questionamento, pelo contexto e pela reflexão. Elas são intensa e necessariamente culturais”, escreve Noë.

E a linguagem? É fato que, nesse ponto, os argumentos de Noë têm potencial para arrepiar os cabelinhos da nuca de alguns linguistas (não de deleite, posso garantir). Outros, porém, são bastante lógicos: através de um diálogo roteirizado para o teatro, a televisão ou o cinema, diz o autor, a escrita transformaria a fala, e vice-versa.

No caso especifico da literatura, Noë diz que sentimos necessidade de investigar a maneira pela qual a linguagem nos organiza. Segundo ele, alguns escritores inventaram uma nova forma de escrita. O exemplo dado é o de James Joyce, que forçou os limites da linguagem em trabalhos altamente experimentais. Outros autores, como Thomas Mann, estão mais interessados em contar histórias, ainda que jamais se restrinjam a isso: quando contam uma boa história, eles estão, ao mesmo tempo, investigando as relações da linguagem consigo mesma e com o mundo. Já abordei o assunto aqui.

Em uma entrevista incluída em A arte do romance, o escritor Milan Kundera é instado a estabelecer as diferenças — que em um primeiro momento podem nos parecer evidentes, mas que não demoram a se revelar mais complexas e menos dispostas a admitir fronteiras estanques — entre a maneira de pensar de um filósofo e a de um romancista. Não seria possível, afirma, extrair de Kafka, Musil ou Tchékhov “uma filosofia coerente”. (O mesmo se diz de alguns filósofos, mas isso é assunto para outro texto.) Para Kundera, Dostoiévski é um grande pensador na medida em que é um grande romancista. “A meditação romanesca é […] interrogativa, hipotética”, escreve.

Se a ciência e a filosofia tentam explicar a arte, frisa Alva Noë, perdem a chance de encontrar nela uma colaboradora ou uma professora. Não são, porém, iniciativas mutuamente excludentes. Não é preciso que a ciência e a filosofia deixem de investigar o que nos leva a produzir e consumir, por exemplo, música ou cinema para que consigam ver na arte uma ferramenta capaz de instruir e levantar perguntas. À sua maneira — e, levando em conta a diversidade de linguagens, plataformas e estilos, de várias maneiras —, a arte é uma forma de investigação. Com ela, no que é uma frase de Noë ligeiramente modificada por mim, podemos surpreender a nós mesmos no ato de surpreender a nós mesmos.

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