Um adeus a Tunga

Artes

07.06.16

Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua definição melhor

Lezama Lima

Tunga, "a luz de dois mundos" no Palacete das Artes Rodin Bahia. Foto de Márcio Lima

O artista Tunga (1952-2016) diante de sua obra À luz de dois mundos (foto: Marcio Lima)

Ele gostava muito das palavras, de alquimia e de Lezama Lima.

Foi um dos raros artistas a colocar em contato imagem e pensamento, partindo de uma compreensão mais aguda que articulava a invisibilidade do sentido ao erotismo do visível. Penso nas suas aquarelas – Quase aurora – imagens tão tênues que não sabemos se estão na iminência de irromper do branco extremo de uma luz ou se prestes a mergulhar de novo na dimensão leitosa de onde provavelmente vieram.

Suas imagens nos libertam da posição de reféns do nosso próprio desastre, em contato com elas deixamos de ser prisioneiros dos produtos visíveis que criamos para aniquilar o nosso olhar e nosso desejo de ver. As suas são imagens que falam do nascimento das coisas nelas mesmas, entre elas, no seu infinito processo de aparição.

Creio que Tunga tenha libertado sua arte tanto das obrigações retóricas quanto da interpretação simbólica, ainda que pareça sempre querer nos prometer um novo mito original, situado em algum lugar do porvir. O fato é que diante de alguns de seus trabalhos temos a sensação de um certo embaraço interpretativo, não totalmente distante daquele produzido pela arte rupestre. Porque são imagens e formas com enorme carga de sentido, mas sempre em alguma medida inacessíveis. Mas nelas o que fascina é a exibição de uma extrema delicadeza visual quando se esperava apenas brutalidade no último homem. Se é comovente a imagem pré-histórica por seu poder de testemunhar a capacidade do primeiro homem de fazer nascer uma imagem, não é menos emocionante ver que o homem que destrói barbaramente a si mesmo e ao seu mundo ainda é capaz de produzir uma imagem tão frágil e enigmática, como no início de tudo. Tunga nos reconecta com a emoção desses começos, mas sabe que seu trabalho se situa no outro extremo.

Ele foi um artista do Antropoceno muito antes que tal discussão viesse à tona no campo das artes. A predileção pelo cobre, com sua enorme potência de significação, os dentes e os cabelos, partes de nós que testemunharão nossa morte e nossa reconversão mineral, para sermos devolvidos ao mundo antropoceno que criamos. No documentário Nostalgia da luz (2010), de Patricio Guzman, há um astrônomo que comenta a analogia entre a procura cósmica de respostas sobre a criação do universo e o ímpeto forense de procurar restos de desaparecidos: “Eu sempre observo nas minhas palestras que vou contar a história sobre como o cálcio dos ossos de todos foi criado. É a história do nosso início, o cálcio de meus ossos foi criado logo depois o Big-Bang, alguns dos átomos estavam lá; vivemos entre as árvores e vivemos entre as estrelas, vivemos entre as galáxias, somos parte do universo. O cálcio de meus ossos era parte do início.”

Assim o artista que exibe os ossos está mostrando o cálcio que estava no início da criação do universo. O início do mundo que criamos está contido em nossos ossos, essa é a espiral barroca do mundo que nasce da imagem. Imagem aqui não é semelhança nem réplica, é a própria força do imaginário. Isso tudo evoca também a sobrevivência do homem na natureza. Tunga escavou a história natural do homem em seus restos, na matéria e nos fluidos que o constituem. Interessava-se pelos restos do homem dispersos nos materiais disponíveis no mundo, é neles que encontra os elementos imaginários que conduziram silenciosamente a historia do homem. O esplendor da força criativa que sentimos diante desse trabalho advém também da visceralidade dessas figuras do imaginário. Não um imaginário individual, psíquico ou confinado à uma consciência estética. É nisso que o barroco de Lezama Lima o fascinava, pois não se trata ali de um estilo histórico, para Lezama o barroco é a realização de um destino. É algo visceral, abrangente, uma forma de contágio que fala de uma era imaginária e do potencial infinito das imagens – seu poder de procriação.

Esse modo de desentranhar o imaginário humano da matéria não deixa de ser uma espécie de arqueologia, uma arqueologia artística do futuro do mundo que vamos deixar, e no qual os museus assumem o valor de grutas, abrigando os rastros e restos deixados pelo homem no processo de exploração produtivista predatória.

Seu trabalho remete também aos gabinetes de curiosidades, com toda sorte de achados excepcionais da natureza, penso nas xifópagas, é claro, e no interesse por aberrações também presentes no universo barroco, mas que nos gabinetes se apresentavam mais claramente como objeto de confluência entre natureza e história, a natureza que ganhava dimensão histórica e vice-versa.

Sabíamos que ele estava doente e que era grave. Mas a morte é sempre uma interrupção. Perdê-lo nos deixa confusos. Ficaremos aqui meio tontos, meio perdidos entre vestígios visionários e reverberações da sua curiosidade barroca, reunidos diante dessa matéria vital gerada por fantasia tão generosa.

True rouge, de Tunga (foto: Daniela Paoliello)

True rouge, de Tunga (foto: Daniela Paoliello)

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