Oscilação da luz

Colunistas

08.06.16

“Para que me filmar?”, a mãe pergunta por Skype à filha cineasta, que decidiu registrar o cotidiano da mãe em seus últimos meses de vida. “Para acabar com a distância do mundo”, a filha responde. A mãe está em Bruxelas; a filha, em Oklahoma, nos Estados Unidos. A câmera no documentário Não é um filme caseiro [No home movie] (2015), último filme da belga Chantal Akerman, morta em outubro, aos 65 anos, funciona como um desses aparelhos que os pais instalam nos quartos dos bebês para acompanhá-los à distância, enquanto dormem no quarto ao lado. A diferença é que aqui a câmera, muitas vezes como se tivesse sido esquecida sobre uma mesa, registra o apartamento da mãe no final da vida (e não é raro que a filha também esteja presente).

A filha cineasta vive entre Paris e o mundo, tem um espírito nômade. O filme fala da ausência (da distância, da iminência da morte da mãe etc.), mas em muitas cenas tanto a cineasta como a irmã caçula, que vive com o marido e os filhos no México, estão ao lado da mãe, em Bruxelas. É especialmente impressionante a cena em que as duas pedem que a mãe não cochile depois do almoço. A insistência das filhas é tanta que logo o texto ganha um duplo sentido, como se pedissem que a mãe não se entregasse, não as abandonasse. Lutam para não deixá-la dormir, como se faz com os feridos nos acidentes, para mantê-la presente, viva. Ao final, exaustas, as filhas acabam se resignando à inutilidade do esforço (a mãe caiu no sono) e ponderam se não deveriam também fazer a sesta.

“Para que me filmar?”, a mãe pergunta à filha. “Filmo todo mundo”, a filha responde. “Claro que você em especial”. A mãe sempre esteve no centro da obra de Chantal Akerman, na duplicidade de um movimento de presença e ausência. Nascida na Polônia, a mãe chegou à Bélgica em 1938, fugindo dos pogroms, para acabar deportada para os campos de extermínio com os pais. Sobreviveu a Auschwitz, mas nunca quis falar sobre a experiência. Não é fortuito que sua voz seja central em “Uma Família em Bruxelas”, texto que a cineasta escreveu sobre a morte do pai e que foi lido esta semana, em tradução de Flora Sussekind e Ivone Margulies, em São Paulo e no Rio, por ocasião da publicação em português, pela Edusp, do livro de Margulies, professora do Hunter College, em Nova York: Nada acontece – o cotidiano hiper-realista de Chantal Akerman (o lançamento no Rio está marcado para esta quinta, 9/6, a partir das 19h, na livraria Blooks, do Espaço Itaú de Cinema, na praia de Botafogo. Em paralelo, o centro cultural  Midrasch exibe, hoje e amanhã, uma pequena retrospectiva da cineasta).

Como aponta Margulies num belo ensaio a ser publicado no dossiê que ela coeditou para o número de setembro/outubro da revista Film Quarterly, a presença e a ausência da mãe em Não é um filme caseiro ganham uma dimensão formal, ótica, com o ajuste automático do diafragma da câmera à passagem dos corpos, tornando a imagem mais clara ou mais escura conforme o movimento das figuras diante da objetiva, assim como as nuvens que encobrem e descobrem o sol (a certa altura, sentada à mesa, a mãe percebe que o dia do lado de fora de repente escureceu, e comenta surpresa a mudança súbita da luz).

Pouco depois de mãe e filha serem vistas juntas pela última vez, há uma sequência em que a câmera sai desembestada da sala do apartamento, nas mãos da cineasta, rumo ao terraço. A mudança/oscilação da luz é radicalizada com a câmera irrompendo para fora do apartamento. Esse movimento brusco entre o interior sombrio, onde mal se distinguem os rostos na contraluz, e o exterior faz a luz explodir, estourando e ofuscando a imagem, dissolvendo num branco cego o mundo material, a começar pelo parapeito que impede a queda. É como um plano suicida, em que a morte é a ausência da imagem.

Chantal Akerman se matou dezoito meses depois da morte da mãe. Sofria de crises de depressão. A simbiose com a mãe era uma questão permanente em seus filmes. O silêncio da mãe sobre a experiência nos campos acabou encontrando na imagem dos filmes da filha uma forma de expressão possível, como se os filmes fossem uma forma substituta, alternativa, de dizer esse silêncio.

Em Não é um filme caseiro há uma cena em que isso fica explícito. É uma cena central em sua aparente marginalidade, quando a cineasta atrás da câmera conversa com a empregada mexicana da irmã, na cozinha da casa da mãe. A mexicana conhece a experiência dos imigrantes ilegais, tratados como cidadãos de segunda classe nos Estados Unidos e na Europa. Akerman fez um documentário com  imigrantes mexicanos, que ela associava aos judeus. Na cozinha, entretanto, a mexicana não consegue fazer relação alguma entre sua experiência e a dos judeus. Quando a cineasta lhe diz de onde veio a mãe (da Polônia, passando por Auschwitz), a mexicana diz apenas: “Ah, sim, Auschwitz, os judeus”, como se lembrasse de algo que já tivesse ouvido em algum lugar. Ali está condensado o sentido terrível da impossibilidade de entendimento entre experiências distantes, distintas mas análogas. E a razão para continuar filmando: para acabar com a distância do mundo.

A imagem torna o silêncio loquaz. É por isso que a mãe não pode desaparecer. O silêncio termina, paradoxalmente, com a ausência, com a morte da mãe. Era a presença da mãe que mantinha o silêncio vivo, o silêncio conspícuo da mãe era o que falava nos filmes da filha.

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