A diretora Lissete Orozco

A diretora Lissete Orozco

Crônica contra as mortes anunciadas

No cinema

08.01.18

Contra o costume desta época de férias, em que geralmente os blockbusters infanto-juvenis alijam do circuito exibidor os bons filmes para adultos, o ano começa muito bem para os cinéfilos brasileiros. Entre os filmes já em cartaz e outros que entram esta semana, as opções são muitas: The square, 120 batimentos por minuto, Roda gigante, O pacto de Adriana, O jovem Karl Marx

Sobre Roda gigante escrevi na coluna passada. The square: A arte da discórdia, vencedor do último festival de Cannes, foi abordado brevemente por aqui quando passou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado, bem como O jovem Karl Marx.

Talvez caiba acrescentar que, revisto meses depois, o esplêndido The square se mostra, talvez, calculado demais, intencional demais, quase como um filme “de tese” (a de que é muito fina a crosta de civilização que nos separa da barbárie). O diretor sueco Ruben Östlund parece empenhado em abraçar o mundo, colocando em cena todas as frentes em que se manifesta hoje um embate de forças: arte/mercado, centro/periferia, rico/pobre, branco/negro, homem/mulher. É uma admirável obra de relojoaria, com cada peça precisamente no seu lugar – mas quando atentamos para o seu mecanismo ela perde um pouco do seu encanto.

Quanto a O jovem Karl Marx, continuo pensando que se trata de uma obra convencional demais (na linguagem narrativa, na dramaturgia) para tratar da gênese de um pensamento e de uma atuação altamente revolucionários. Mas o dado bom, além de um didatismo talvez necessário nestes tempos trevosos, é constatar que o haitiano Raoul Peck, diretor do magnífico documentário Eu não sou seu negro, não encara sua militância identitária como algo desvinculado de um conflito mais amplo, a saber, a velha luta de classes.

120 batimentos por minuto

Chegamos então a 120 batimentos por minuto, do marroquino-francês Robin Campillo, que ganhou o prêmio especial do júri e o prêmio da crítica no mesmo festival de Cannes em que The square levou a palma de ouro. É uma eletrizante reconstituição da militância do Act Up, grupo militante de conscientização e combate à Aids, no início dos anos 1990 na França.

Focalizando as assembleias e algumas ações diretas do grupo (invasões de indústrias farmacêuticas, escolas e gabinetes de autoridades, encenações de impacto em praças públicas, panfletagens, pichações etc.), mescladas com as trajetórias pessoais de uns poucos personagens – em especial do turbulento (e doce) Sean Dalmazo (Nahuel Pérez Biscayart) –, o filme funde de modo notável o épico, o dramático e o reflexivo.

A reconstituição vibrátil das discussões e ações coletivas, com muita câmera na mão, enquadramentos nervosos e aparentemente improvisados, nos remete a um momento em que a Aids ainda era cercada de perplexidade, incompreensão e preconceito. É contra esse estado de coisas que se insurge aquele punhado de ativistas, em sua maioria jovens já portadores do vírus HIV.

A transição entre o registro ilusoriamente documental e a percepção individual de um personagem – entre a terceira e a primeira pessoa, entre o coletivo e o individual – se dá às vezes no interior de um mesmo plano, mediante a uma sutil mudança no foco e na profundidade do som. Um deslizamento tanto mais extraordinário quanto mais imperceptível.

Na filmografia centrada nos primeiros e devastadores tempos da Aids, encontra-se de tudo, do melodrama um tanto datado Filadélfia, de Jonathan Demme, à pungente autoficção Blue, de Derek Jarman, passando por filmes tão díspares quanto Meu querido companheiro, Clube de compras Dallas, Kids e até, de certo modo, os brasileiros Carandiru e Cazuza, sem contar os documentários.

Mas a obra ficcional com a qual 120 bpm talvez dialogue de modo mais profícuo, servindo-lhe como contraponto e complemento, é o telefilme E a vida continua (de 1993, curiosamente o mesmo ano de Filadélfia e Blue), que reconstrói a saga das primeiras tentativas de compreender e controlar a doença, por parte de cientistas dos EUA e da França e da comunidade gay de San Francisco.

O pacto de Adriana

Igualmente impactante, por motivos diferentes, é o documentário chileno O pacto de Adriana, da estreante Lissete Orozco. Fascinada desde menina por uma tia “chique” e esfuziante, Adriana Rivas, ao chegar à idade adulta Lissete passa a escarafunchar segredos mal guardados de família e a relacioná-los com a história de seu país, até chegar à conclusão estarrecedora de que sua tia Adriana foi uma agente da repressão política durante a ditadura de Pinochet.

O espanto e a dor de ver desmoronar a figura querida da tia, ao mesmo tempo em que esta procura desesperadamente negar as evidências e apelar para o sentimento familiar para manter sua bela imagem, enquanto uma malta vingativa e justiceira urra diante de sua janela, tudo isso chega ao espectador com a força e o frescor de um home movie que se converte sem aviso num filme de terror.

Construído ao longo de anos só com material captado pela própria diretora – conversas por Skype com a tia exilada, entrevistas com sobreviventes do período investigado e com pesquisadores –, além de fotos e reportagens de época, o filme reproduz uma penosa jornada em direção ao esclarecimento. O privado e o público, o afeto pessoal e a consciência política, a biografia e a história – todos os atritos entre essas esferas vêm à tona nesta obra singular, como feridas em carne viva.

O mais admirável é o modo como, sem condescendência, mas também sem uma condenação sumária, o documentário mantém a complexidade inescrutável da personagem investigada: até que ponto Adriana mente para os outros e até que ponto mente para si mesma? Qual é a autoconsciência possível diante do horror absoluto?

O pacto de Adriana se inscreve numa vertente documental que tem ganhado força mundo afora (inclusive no Brasil, por exemplo com Os dias com ele, de Maria Clara Escobar, ou Construindo pontes, de Heloisa Passos), na qual um quadro histórico amplo é visto por um prisma pessoal, autobiográfico. Por seu tema específico – uma mulher encantadora envolvida num processo de indizíveis atrocidades –, faz lembrar Eu fui a secretária de Hitler (2002), de André Heller e Othmar Schmiderer. De nenhum dos dois o espectador sai ileso.

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