Almudena Carracedo e Robert Bahar

Almudena Carracedo e Robert Bahar

Cinema contra o esquecimento

No cinema

29.10.18

Leia também os primeiros três posts da série: No covil do inimigo, Mundo em convulsão e Provocações aos sentidos e à inteligência.

A 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chega a seus últimos dias, mas ainda dá tempo de ver alguns dos filmes mais fortes da programação. Um deles é o documentário espanhol O silêncio dos outros, dirigido por Almudena Carracedo e Robert Bahar e produzido por Pedro Almodóvar.

 

 

É, em resumo, um filme sobre as cicatrizes, ou melhor, as feridas abertas deixadas pela ditadura franquista na sociedade espanhola, mesmo hoje, mais de quatro décadas depois da morte de Franco. No centro do documentário está a lei de anistia aprovada pelo parlamento da Espanha em 1977, conhecida como “Pacto do Esquecimento”. De acordo com a lei, deveriam ser esquecidas as atrocidades da guerra civil e dos quase quarenta anos de regime fascista para que o país pudesse seguir “em paz” rumo ao futuro.

 

Democracia mutilada

Mas, como mostra o documentário, esse silêncio só fez prolongar o sofrimento de milhões de espanhóis e manter mutilada a democracia no país. O que torna o filme tão eficaz é a habilidade com que entrelaça o quadro geral desse processo histórico com um punhado de dramas individuais de suas vítimas.

Uma das primeiras imagens é a de uma velhinha que caminha com ajuda de um andador até a margem de uma rodovia e se detém no local onde estão depositadas algumas flores. Ali foi enterrado, numa vala sem identificação, o corpo de sua mãe, assassinada a sangue frio pelos franquistas. E até hoje, setenta anos depois, essa anciã não teve autorização para exumar os restos mortais da mãe.

Outro homem, um respeitável setentão de cabelos brancos, caminha umas poucas quadras em Madri entre a sua casa e o prédio onde mora o homem que o torturou em 1968, Antonio González Pacheco, conhecido como “Billy the Kid”. O homem seviciado, José María Galante, era então um estudante antifranquista de 22 anos. Pacheco, o torturador, continua livre e impune.

Inspirados no caso Pinochet – em que o ditador chileno foi processado por um juiz espanhol e preso em Londres com base em leis internacionais contra crimes de lesa-humanidade –, vítimas do franquismo formaram na Espanha uma espécie de “comissão da verdade” que busca reparação dos crimes da ditadura. Em 2010 o grupo conseguiu o apoio de uma juíza de Buenos Aires, Maria Servini, e instaurou um processo na Argentina.

O processo tem três objetivos básicos: identificar e punir os responsáveis por torturas e assassinatos; localizar e resgatar os restos mortais das vítimas do regime; buscar os filhos que foram sequestrados de suas mães quando ainda recém-nascidos.

 

Torturadores impunes

Mesmo com os obstáculos impostos pelo governo e pela Justiça da Espanha, o processo avança e já conta com mais de trezentos querelantes. A juíza Servini ouviu 167 depoimentos, ao vivo ou por teleconferência. Dos 148 torturadores identificados, vários ocupam ou ocuparam cargos importantes (ministros, prefeitos, senadores) no período democrático pós-Franco. (Qualquer semelhança com um grande país da América do Sul não será mera coincidência.)

Ao registrar a luta dos espanhóis para acertar contas com esse passado sombrio, O silêncio dos outros acaba por exercer de modo contundente uma das funções mais nobres do cinema e de toda arte: combater o esquecimento, manter vivo o sentido do humano, hasta que las ranas críen pelo, na inversão do provérbio espanhol formulada no filme por uma das vítimas.

 

Nova safra brasileira

A mostra de São Paulo traz também uma porção de filmes relevantes da nova safra brasileira. Dois dos melhores, Domingo e Los silencios, já comentei brevemente quando foram exibidos no recente festival de Brasília. O mesmo ocorreu com o belíssimo Temporada. Deslembro foi resenhado há uma semana, já durante a Mostra. Vamos então a alguns outros destaques.

 

 

Rasga coração, de Jorge Furtado, adapta para nossa confusa época a peça teatral escrita por Oduvaldo Vianna Filho no início dos anos 1970, auge da ditadura militar. No filme atual, Custódio (Marco Ricca), vulgo Manguari Pistolão, um funcionário público e ex-militante político de meia-idade, tenta se entender com o filho adolescente (Chay Suede), que é barrado no colégio ao tentar entrar para as aulas vestido de saia.

Ao tentar enquadrar as pautas da turma do filho (liberdade de gênero, defesa da ecologia, alimentação saudável) nos parâmetros da sua velha atuação política, o esforço desajeitado de Manguari reflete, de certa forma, o empenho do próprio cineasta em compreender os novos tempos e as novas gerações. É um filme irregular, mas muito íntegro e potente, que reafirma a alta qualidade de Jorge Furtado como roteirista e diretor de atores (Marco Ricca está magnífico), mais do que como criador de imagens originais.

O olho e a faca, terceiro longa-metragem de Paulo Sacramento, tem como principal trunfo, além da destreza e elegância da mise-en-scène, a ambientação de boa parte da narrativa numa plataforma de petróleo no meio do oceano. Ali se desenrola o drama de um punhado de homens, sobretudo do engenheiro Roberto (Rodrigo Lombardi), dividido entre a ascensão profissional e a lealdade aos companheiros, entre a carreira e a família.

O que enfraquece um tanto esse drama ético é a tendência a resolver tudo, ou quase tudo, nos diálogos. O olho e a faca cresce muito quando Sacramento dá rédea solta a seu enorme talento na criação de imagens inesperadas, como a do mar que se descortina diante de um prédio no centro de São Paulo, ou da enorme plataforma de petróleo que se ergue junto a uma praia do Rio de Janeiro. Esse é o cinema que se espera de Paulo Sacramento.

 

Brasil profundo

Por fim, cabe destacar dois novos documentários que resgatam, nestes tempos obscuros, o amor pelo Brasil, sua natureza e sua cultura. Um deles é Clementina, de Ana Rieper, sobre a imensa figura de Clementina de Jesus, “descoberta” como cantora aos 62 anos, depois de toda uma vida como lavadeira e empregada doméstica. Com preciosas imagens de arquivo e esclarecedores depoimentos de gente como o pesquisador Luiz Antonio Simas e os compositores Hermínio Bello de Carvalho e Nelson Sargento, o filme é um canto de louvor à rica cultura afro-brasileira transmitida oralmente de pai para filho – e sobretudo de mãe para filha – desde os tempos da escravidão.

Frans Krajcberg: Manifesto, de Regina Jehá, é um resgate, também fartamente documentado, da atuação e das ideias do artista polonês (1921-2017), um dos grandes europeus que adotaram o Brasil como pátria, a exemplo de Pierre Verger, Otto Maria Carpeaux e Boris Schnaiderman, entre tantos outros. As expedições de Krajcberg à Amazônia, sua intensa militância em defesa da natureza e dos índios, a instalação de seu sítio-ateliê no sul da Bahia, em tudo isso transpira o imenso amor do artista pelo tesouro natural e humano do país – e, analogamente, a enorme admiração da diretora pelo artista.

Vistos em conjunto, esses dois documentários servem como alento neste momento de perplexidade e apreensão. Temos um país grande demais, em todos os sentidos, para que possamos nos dar ao luxo de perdê-lo.

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