Butler e a violência ética: de quem é a vida afinal?

Colunistas

09.09.15

A filósofa Judith Butler, que faz conferência nesta quarta-feira, 10, no I Seminário Queer – cultura e subversão de identidades, promovido em São Paulo pela Revista Cult, encerra seus compromissos no Brasil depois de ter lotado o Teatro Castro Alves, na Bahia, onde falou sobre como os sujeitos sociais procuram reconhecimento, resultado de uma luta contínua para que vidas sejam reconhecidas mesmo quando os corpos não se encaixam naquilo que deveriam ser. Sua passagem por aqui – sobre a qual escrevi recentemente – está acompanhada da tradução de dois de seus livros. Relatar a si mesmo – crítica da violência ética, lançamento da Autêntica com posfácio de Vladimir Safatle, e Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto?, pela Civilização Brasileira. São dois títulos que se entrelaçam num ponto: o que faz uma vida ter valor para ser reconhecida como vivível. Seus subtítulos fazem essa ligação que pretendo trabalhar a partir também do meu subtítulo: de quem é a vida, afinal?

Em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética – tradução de Rogério Bettoni para Giving an account of oneself, editado nos EUA em 2005 – Butler ingressa no grupo das grandes pensadoras políticas, articulando os problemas de gênero como problemas com os quais a filosofia moral se debate desde meados do século XX: a ideia de que, uma vez abalado o sujeito como fundamento da moral, estejamos vivendo em um ambiente de niilismo ético, sem referências, a reboque de transformações sociais a partir das quais estaremos todos perdidos.

Judith Butler

O subtítulo do livro – crítica da violência ética – aponta para o que me parece haver de mais importante no texto, até porque a palavra ética costuma vir carregada de uma conotação positiva. Tendemos a pensar que decisões tomadas conforme a ética são consideradas boas decisões. Quando Butler associa ética a uma forma de violência, retoma um debate sobre reconhecimento, termo muito caro ao seu pensamento, para interrogar como, dentro da reivindicação de reconhecimento, pode também estar contida a violência de um enquadramento prévio a partir do qual o reconhecimento então se dá. É nesse enquadramento – tema que ela começa a desenvolver a partir de uma leitura muito particular teoria do enquadramento, do sociólogo Erving Goffman, e que perpassa os seis artigos de Quadros de guerra – que se estabelecem as condições violentas em que o reconhecimento pode vir a se dar. Aqueles que estão fora de quadros normativos sequer chegam a alcançar a condição de ser reconhecido, não têm direito a vidas vivíveis nem passíveis de luto.

Aqui entra o problema da violência ética que a filosofia prática tem tentando enfrentar. A bioética e seus debates contemporâneos sobre as decisões de prolongamento da vida está diante de muitos dilemas, um dos quais me interessa particularmente por me parecer possível de ser pensado a partir da filosofia de Butler: a vida é individual, e para mantê-la devem ser feitos todos os esforços em prol daquele indivíduo? Ou a vida é também coletiva, e sua manutenção deve considerar as relações sociais, afetivas e familiares ali envolvidas? Nesta entrevista, a ativista norte-americana Katy Butler expressa esse impasse quando diz: “Isto pode chocar muita gente, porque somos parte de uma cultura individualista, mas acho que toda a família deve ser vista como um paciente.”

O exemplo da decisão sobre qual o valor de uma vida pode ser usado também quando Butler pergunta quais são as condições para que uma pessoa possa ser reconhecida. Não por acaso, Butler recorre ao filósofo lituano Emmanuel Lévinas, aquele que propõe que a ética está no reconhecimento do outro enquanto diferente, sem qualquer exigência de que esse outro venha a ser constrangido ao meu quadro normativo. A rigor, ao contrário: que o outro se mantenha inteiramente outro e ainda assim seja reconhecido. Esse é um dos importantes argumentos de Butler, cuja motivação inicial poderia ser pensar nas exigências normativas que recaem sobre todos aqueles que não respondem aos modelos de heterossexualidade, mas que acaba por ser uma imensa contribuição ao debate sobre em que condições cada um de nós está sujeito a algum tipo de violência ética.

Com isso, Butler confunde uma polaridade histórica na filosofia moral que divide, de um lado, liberais que entendem a vida como algo único do indivíduo, isolado de tudo que o compõe, e de outro, os comunitaristas, para os quais não pode haver vida separada dos laços afetivos, relações familiares e sociais que a constitui. Butler faz uma crítica às duas correntes ao rejeitar, ao mesmo tempo, a exigência de um sujeito estabelecido como senhor de si mesmo para fundamentar decisões éticas e criticar a exigência desta identidade comum como condição para o reconhecimento ético. Faz disso uma abordagem filosófica que recusa qualquer diagnóstico de niilismo moral em prol da possibilidade de inventar algo de novo, fora da violência dos enquadramentos e das molduras que os circunscrevem.

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