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Duas vezes Judith Butler no Brasil

Filosofia

30.10.17

A segunda vinda da filósofa Judith Butler ao Brasil tem de novo uma dupla marca, como na primeira vez, há dois anos. Sua chegada é motivo para o lançamento de dois de seus livros: Caminhos Divergentes – judaicidade e crítica ao sionismo (Boitempo Editorial), com palestra na próxima segunda-feira, 6, na UNESP; e A vida psíquica do poder – teorias da sujeição (Autêntica). São títulos de momentos distintos da sua obra: o primeiro livro data de 2012 nos EUA e discute questões ligadas à violência de Estado; o segundo tem publicação original em 1997 e é parte dos desdobramentos teóricos exigidos pelas questões abertas desde o final dos anos 1980, quando da publicação de Problemas de Gênero (1989 nos EUA, 2003 no Brasil).

Capa dos livros de Judith Butler

Novos livros de Judith Butler no Brasil

 

Engana-se, no entanto, quem pretender estabelecer uma separação teórica a partir da distância temporal existente entre o livro de 1997 e o de 2012. Em A vida psíquica do poder, Butler está animada pela leitura da filosofia de Michel Foucault, no qual o tema do poder é central na formação dos sujeitos, na subjetividade, no assujeitamento – termo estabelecido como tradução brasileira para assujettissement. Butler parte deste aparente paradoxo do termo sujeito, que ao mesmo tempo quer dizer se constituir como “eu” e estar submetido a uma estrutura de poder, para revisitar diferentes pensadores – como Hegel, Althusser, Nietzsche e Freud –, e dar continuidade a um tema inaugural da sua obra, o estatuto do sujeito na filosofia contemporânea.

A partir de 2001, para ser mais exata, a partir do 11 de setembro de 2001, Butler coloca em debate o poder do Estado sobre os sujeitos. Emerge então o tema de Caminhos divergentes e do seminário que o acompanha, Os fins da democracia, no qual Butler estará debatendo acompanhada de sua companheira, Wendy Brown, ela também uma pensadora crítica do modelo democrático norte-americano, seja pelo fracasso do multiculturalismo e de suas políticas de consenso e tolerância, seja por sua expansão neocolonial em uma política internacional pautada por violência, guerras e invasões.

Caminhos divergentes tem assim grande contribuição a dar no debate sobre o que pode um Estado. Inspirada nas suas críticas à violência do Estado de Israel, já criticadas como anti-semitas, Butler encara o desafio de recolher fontes judaicas para criticar a política israelense e afirmar que a crítica ao sionismo não equivale a antisemitismo. São mobilizados pensadores como Hannah Arendt, Primo Levi e Walter Benjamin. Dele, Butler recupera o importante Por uma crítica da violência, de 1921, no qual o alemão percebe como a violência de Estado se sustenta no tripé militarismo, polícia e pena de morte. É ali também que Benjamin pensa a violência constitutiva do ordenamento jurídico dos estados modernos.

É verdade que, como Butler observa, a crítica de Benjamin foi sendo desacreditada ao longo do século XX por uma corrente de pensadores que pretendeu afirmar o direito como o mecanismo pelo qual se poderia enfrentar a ascensão do fascismo. Mas é verdade também que, para outros autores, entre os quais eu localizaria Giorgio Agamben, o direito não fornece instrumentos suficientes para combater o estado de exceção que participa, como paradigma de governo, das democracias modernas.

É aqui talvez que os caminhos divergentes de Butler mais se aproximem dos descaminhos tomados pela política brasileira contemporânea e tornem sua presença no Brasil tão mais importante. Não porque nos seja tão útil discutir a política externa norte-americana, embora esta sem dúvida nos afete cada vez mais na sua expansão neocolonial. Escárnio, no entanto, parece o ponto que mais nos toca no diagnóstico de Butler: “o escárnio tanto do direito constitucional quanto do internacional que caracteriza a política externa dos Estados Unidos em suas práticas de guerra, tortura e detenção ilegal”. Interessa ao momento brasileiro sobretudo pela primeira parte da frase – o escárnio ao direito constitucional –, que tem significado o desprezo das liberdades individuais e de todo aparato político-democrático que o Brasil parecia ter construído nas última décadas. É deste diagnóstico que ela mesma tem sido alvo, nos inúmeros protestos contra a sua vinda ao país, que ignoram a liberdade como direito fundamental.

Por fim, da primeira vez em que esteve no Brasil, em 2015, de Butler foram lançados Quadros de guerra (Civilização Brasileira) e Relatar a si mesmo (Autêntica), o primeiro editado nos EUA em 2009 e o segundo em 2005. Suas palestras em Salvador, na UFBA, e em São Paulo, no Sesc Mariana em grande medida surpreenderam plateias que ainda esperavam a autora de Problemas de gênero, mas encontraram uma filósofa propondo paradoxos que ainda desafiam tanto os teóricos quanto os militantes: como continuar mobilizando vulnerabilidades a fim de pedir proteção estatal ao mesmo Estado que é violento justamente com os sujeitos mais vulneráveis? Para boa parte da militância que esperava a mera adesão de uma filósofa queer, foi um susto ouvir Repensando vulnerabilidade e resistência.

Agora, grupos radicais de direita insistem em encontrar em Butler aquilo que ela não é: nem a primeira e principal formuladora da teoria queer nem a inventora do gênero como construção social. Na ambigüidade do título do seminário (Os fins da democracia) está uma resposta possível aos seus ruidosos e mal informados opositores: estamos diante dos fins da democracia, seja porque é preciso repensar seus objetivos e métodos políticos, seja porque é urgente encontrar formas de substituir a democracia representativa como modelo de governo que fracassou, tanto a ponto de destruir o valor que lhe seria mais caro, a liberdade.

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