Imagem do filme "A moça do calendário"

O futuro é mulher

No cinema

30.10.17

No corre-corre da 41ª Mostra Internacional de Cinema, esta coluna quase deixa escapar um dos filmes mais vigorosos do evento, A moça do calendário, de Helena Ignez, que ainda tem sessões hoje (30 de outubro) e amanhã.

A partir de um roteiro escrito em 1987 por Rogério Sganzerla, inspirado por sua vez em contos de Luís Antonio Martins Mendes, a atriz e diretora fez seu filme mais orgânico e maduro, com uma pungente atualidade.

O protagonista é o “mecânico e dublê de dançarino” Inácio (André Guerreiro Lopes, extraordinário), que a narradora (a própria Helena Ignez) nos conta, em off, ter sido um jovem da elite, aluno das melhores escolas, antes de romper de modo traumático com o pai latifundiário.

Em torno desse fio narrativo central – as relações de Inácio com a mulher, com os colegas de trabalho, com o dono da oficina, com seus “bicos” como ator, com o sonho de encontrar a tentadora “moça do calendário” (a luminosa Djin Sganzerla) –, desenvolvem-se outros núcleos ou módulos: um apartamento comunitário onde vivem artistas e intelectuais, uma ocupação do MST, uma ONG contra o racismo etc.

Godard e chanchada

É uma tapeçaria heterogênea: há discursos sobre temas urgentes (violência de gênero, ocupação de escolas), há clipes musicais, inserções de filmes antigos, cenas burlescas e momentos de um delicado lirismo urbano, como aqueles em que Inácio percorre de bicicleta a praça Roosevelt e ruas de Santa Cecília, ou as caminhadas de Iara (também Djin Sganzerla) por calçadões e galerias do centro paulistano. Godard e chanchada, Noel Rosa e Mc Fininho, teatro de vanguarda e registro documental. Helena Ignez orquestra tudo isso com mão ao mesmo tempo leve e segura, sem perder o ritmo e o frescor.

Algumas ideias são bem características de Rogério Sganzerla, como o dono da oficina, o impagável “Celso Patrão, pré-capitalista primário”. Outras, ao que tudo indica, têm a ver com a sensibilidade especificamente feminina da diretora.

Há uma cena admirável que funde inúmeras tensões e demandas: num enquadramento fixo, com foco profundo, vemos Inácio em primeiro plano, comendo um ovo cozido e vendo no notebook o ator Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) no filme Sem essa, aranha, de Sganzerla. Enquanto estuda e repete os gestos do ator, ele discursa contra a exploração capitalista dos trabalhadores. No fundo do quadro, sua mulher (Zuzu Leiva), passando uma camisa a ferro, retruca: “E você acha que eu gosto desta vida de uber-doméstica, passando roupa para pagar o condomínio?”

De certo modo, está tudo ali, assim como, em estado de potência, o filme se anuncia todo no magnífico plano inicial, em que, de costas para a câmera, o protagonista, numa laje sobre o tráfego do Minhocão, rege com os braços o caos da cidade.

Mulher na direção

É interessante observar como Helena Ignez, a partir de sua experiência acumulada de atriz, cinéfila e parceira criativa de Glauber Rocha e principalmente de Rogério Sganzerla, tornou-se na maturidade uma cineasta de personalidade própria, plena de vigor, inventividade e poesia.

O cinema novo não teve nenhuma mulher diretora. O cinema dito “marginal” tampouco. A própria nouvelle vague só contou com uma mulher cineasta, Agnès Varda, que aliás tem na Mostra de São Paulo uma bela retrospectiva. Hoje a situação é outra, e Helena Ignez segue desbravando esse mundo novo. Como diz o título de um filme de Marco Ferreri, Il futuro è donna.

Antes do fim

Helena Ignez está presente também, como atriz, em outro belo filme da 41ª Mostra, Antes do fim, de Cristiano Burlan. Ali, ela é a companheira de vida de um idoso (Jean-Claude Bernardet) que está decidido a morrer e quer que ela o ajude na passagem. Mas ela tenta convencê-lo a viver, arrastando-o para as belezas e alegrias da vida: o sexo, a dança (de Kazuo Ohno), a contemplação da natureza. É com delicadeza, mas também com ousadia e humor, que Burlan encena com esses dois ícones do nosso cinema temas como o amor, a velhice, o tempo e a morte.

Outrage coda

Takeshi Kitano fecha com esse filme, presente na 41ª Mostra, a trilogia iniciada com Ultraje (2010) e Beyond outrage (2012). Em seu conjunto, a trilogia trata dos conflitos entre clãs da Yakuza, a máfia japonesa, e do papel do matador Otomo (o próprio Kitano), fiel a um dos líderes e a um rigoroso e solitário código de conduta. Neste terceiro segmento, a trama se complica com as brigas internas no clã Hanabishi e as relações com a máfia coreana.

Reforça-se o retrato da Yakuza como uma grande corporação capitalista, com seus engravatados homens de negócios em reuniões e discussões intermináveis, pontuadas por explosões de violência filmadas e coreografadas de modo espetacular. Poder e riqueza banhados em sangue.

A oeste do rio Jordão

Desta vez em registro documental, Amos Gitai retorna a seu tema recorrente, os dilemas do estado de Israel em sua espinhosa relação com os palestinos. Aqui, ele visita a Cisjordânia, buscando ouvir os moradores da região, registrar como vivem e sobretudo destacar as iniciativas conjuntas em busca da paz. Essa jornada exploratória mais recente é pontuada por imagens de uma entrevista realizada por Gitai em 1995 com o então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, assassinado por fanáticos pouco tempo depois.

Se os governantes não chegam a um acordo duradouro de paz – e o assassinato de Rabin é emblemático dessa dificuldade –, a própria população civil dos dois lados – o palestino e o israelense – busca formas de convivência pacífica: festivais de música, torneios de gamão, grupos de mulheres que perderam parentes na guerra. Com paciência e curiosidade, Gitai ouve todo mundo: crianças, jornalistas, soldados, viúvas. Não se furta a, ocasionalmente, expressar sua opinião contra o fanatismo e a violência. Um filme militante, em suma, no sentido mais nobre do termo.

Abaixo a gravidade

Com esse título inspirado, o veterano Edgar Navarro constrói um filme feito da mistura improvável de melancolia e vitalidade, ao traçar a trajetória de um homem idoso, Bené (Everaldo Pontes), que deixa seu retiro no interior, onde cultiva em sua horta plantas e ervas medicinais, para voltar a Salvador para tratar da saúde e acompanhar uma moça (Rita Carelli) que acaba de dar à luz com sua ajuda.

Nesse retorno, fundem-se memórias do seu passado e as imagens duras da cidade atual, com seus miseráveis e loucos, a frieza de um mundo dominado pelo dinheiro e pelo salve-se quem puder, mas em cujas frestas persistem a solidariedade, o afeto e o prazer, inclusive e principalmente o sexual. Instâncias de ascensão (espiritual e carnal) contra a implacável gravidade que nos mantém presos a esta terra ensandecida.

Como aperitivo, fragmentos do making of do filme:

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