Deixemos de lado por um momento os “filmes do Oscar” para dar atenção a uma obra singular de um diretor idem. Estou falando de Antes do fim, o mais recente longa-metragem do gaúcho criado e radicado em São Paulo Cristiano Burlan.
Uma sinopse singela dirá que se trata de alguns dias na vida de um casal de idosos, uma atriz (Helena Ignez) e um ex-bailarino (Jean-Claude Bernardet). Para evitar os tormentos da degeneração física, ele decide se matar e para isso solicita a cumplicidade dela. Ela rejeita o pacto de suicídio duplo, mas aceita ajudá-lo na passagem, enquanto tenta convencê-lo a ficar mais um pouco por aqui.
A morte e o tempo
Há, portanto, uma contraposição de duas visões, que correspondem mais ou menos às dos atores que encarnam os personagens (mas isto por enquanto não vem ao caso). A visão dele, cerebral, lúcida, cartesiana, recusa o prolongamento artificial da vida imposto pela indústria médico-farmacêutica e afirma o direito inalienável de decidir como e quando partir. Ela, movida por uma energia mais intuitiva, lembra a ele o exemplo do dançarino japonês Kazuo Ohno (1906-2010), que se apegou à vida até o último instante, já numa cadeira de rodas, quando toda a sua arte se resumia ao movimento sublime das mãos.
Dois motivos essenciais se cruzam então. Um deles, presente no “enredo”, nos diálogos e nas referências explícitas a Albert Camus, é, obviamente, o do suicídio. Mas, entrelaçado a esse, e impresso na própria forma do filme, há o tema do tempo.
O tempo sempre foi, desde o início, uma das questões centrais do cinema, se não “a” grande questão. No cinema narrativo clássico, o tempo é compactado ou distendido de acordo com as necessidades do movimento, da progressão dos eventos, da construção do suspense e da emoção. No cinema dito moderno, há as mais variadas tentativas de “apreensão direta do tempo”, segundo a expressão de Gilles Deleuze, que dedicou um livro especialmente a essa reflexão (A imagem-tempo).
Em Antes do fim, embora o desfecho (a morte) esteja anunciado desde o início, não há teleologia, não há progressão narrativa, e sim uma coleção de momentos aparentemente desconexos da vida do casal. São “blocos de duração”, como que tentativas diversas de apreender essa entidade fugidia, o tempo que se esvai.
Na primeira e admirável cena, só ouvimos a voz dos protagonistas, que contemplam de longe um casal na praia e imaginam o que eles estão dizendo um ao outro. Em outra sequência, bem mais adiante, vemos os dois fazendo movimentos de dança e tai-chi-chuan num morro descampado, contra um forte vento, ao som de um trio para piano de Schubert. São momentos de grande intensidade e beleza – e essencialmente cinematográficos.
Alternadas a essas pequenas epifanias há passagens mais prosaicas – ensaios teatrais; caminhadas noturnas pelas ruas do centro de São Paulo; conversas na cama, cada um com seu livro – e momentos cômicos, como a compra de Viagra numa farmácia ou a escolha de um caixão numa funerária, esta última filmada como cena burlesca de cinema mudo.
Tragédia e ironia
Essa colagem heterogênea e desigual (nem todas as tentativas são bem-sucedidas) faz com que a abordagem da morte e da finitude oscile entre a solenidade e a descontração, a tragédia e a ironia derrisória.
Mas há uma coisa que unifica tudo isso, configurando uma percepção poético-filosófica das questões em pauta (a morte, o tempo): a luz, a textura da imagem. Ao optar por um preto e branco de baixo contraste, um tanto enevoado, quase esfarelado, o cineasta parece traduzir visualmente a ideia de que “a matéria vida era tão fina”. A vida é sopro, poeira, grãos de luz cintilando no facho do projetor.
A bela sequência final – quem quiser evitar o spoiler pode pular este parágrafo – reforça e justifica essa opção. Vemos um filme em que Kazuo Ohno dança diante de uma tela, imitando os movimentos que ele mesmo faz num filme em que está caracterizado como mulher. Diante desse filme dentro do filme, o personagem Jean também dança, produzindo uma tripla refração, ou antes uma tripla transparência. O corpo humano se dissolve em luz, a imagem vence a morte, a vida se converte em cinema.
Dois últimos comentários sobre Antes do fim. Primeiro: é evidente que os atores trouxeram muito de si mesmos para seus papéis. Jean-Claude, o “ex-crítico” de cinema que há 25 anos é soropositivo, tem exposto incessantemente suas concepções acerca do prolongamento compulsório da vida (ou da “bio”, como prefere dizer) para lucro da “máquina médica”. Por sua vez, Helena, a grande atriz do cinema novo e do cinema “marginal” e hoje cineasta de primeira linha, aporta sua concepção luminosa e dionisíaca da existência, matizada por práticas e filosofias orientais. (A inserção de um trecho de Copacabana mon amour, de Rogério Sganzerla, em que, no auge da juventude e beleza, ela diz ter “pavor da velhice”, tinge-se de uma ironia agridoce.)
A última observação é de que a morte é um assunto muito caro a Cristiano Burlan, que perdeu de modo trágico e violento o pai, a mãe e um irmão mais jovem. Está agora finalizando Elegia de um crime, sobre o assassinato de sua mãe, o último longa-metragem de sua “trilogia do luto”, que inclui os documentários Construção (2007), sobre a morte do pai, e Mataram meu irmão (2013). Quem quiser conhecer um pouco de sua acidentada trajetória e de suas ideias, além de ver seus filmes, deve ler a excelente entrevista que ele concedeu em 2014 a Jean-Claude Bernardet.
Mizoguchi
Um dos autores mais amados e admirados da história do cinema, o japonês Kenji Mizoguchi (1898-1956), ganha a partir do próximo dia 20 uma grande retrospectiva no Instituto Moreira Salles de São Paulo. A partir de 6 de março a mostra vai para o IMS do Rio de Janeiro.
Serão exibidos dezoito títulos dessa obra fabulosa, que une paixão e rigor no mais alto grau, atingindo momentos de inexcedível grandeza estética e humana. Escrevi aqui brevemente sobre a filmografia de Mizoguchi quando foi lançada em DVD uma caixa de clássicos seus. Se existe um programa que merece o clichê “imperdível”, é essa retrospectiva.