Chensiyuan/Wikimedia

Favela da Rocinha

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Favela da Rocinha

A Rocinha nunca foi só a Rocinha

Política

26.09.17

Dos bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro de onde pode ser vista, a Rocinha exibe a quem a contempla a perspectiva teórica defendida pela socióloga Lícia Valladares (A invenção da favela, FGV, 2005): as favelas cariocas não podem ser reduzidas a uma totalidade nem compreendidas como um espaço homogêneo. Estão marcadas por desigualdades internas que não escapam sequer ao olhar do leigo. De alto a baixo, de um lado ou do outro do túnel Dois Irmãos, há, encarapitados no morro que lhes abriga, diferentes tipos de moradias, mais ou menos consolidadas, mais ou menos verticalizadas, mais ou menos coloridas, mais ou menos urbanizadas, mais ou menos acessíveis do ponto de vista geográfico ou político.

Nestas tantas camadas que formam a Rocinha existe uma que chama a atenção – a centralidade atribuída, seja pelos governos, seja pela imprensa, a tudo de bom ou ruim que ali acontece. Do jeep tour que faz da favela um espaço exótico à grande concentração de recursos de organizações não governamentais, nada na Rocinha passa desapercebido. É o que explica, por exemplo, o enorme destaque para as violências – da polícia e do tráfico de drogas – de procedimentos iguais aos postos em prática todos os dias em outras favelas da cidade, como Jacarezinho, Maré, Complexo do Alemão e Cidade de Deus, para citar apenas as recente explicitamente conflagradas.

Estar nas fronteiras de três bairros onde vive a elite econômica da cidade – São Conrado, Gávea e Leblon – é o motivo de sua superpopulação e sua superexposição, resultado da falsa sobreposição entre Zona Sul e cidade do Rio de Janeiro (o bairro com a maior densidade demográfica da capital é a Rocinha, com 48.258 habitantes por km2). Há pelo menos 40 anos, tráfico de drogas e forças de segurança produzem e manejam crises na Rocinha que servem para fazer da “guerra ao tráfico”  o “estado de exceção como paradigma de governo,” para usar a expressão do filósofo italiano Giorgio Agamben (Estado de exceção, Boitempo Editorial, 2004).

Por paradigma de governo ele quer denunciar um modo de gestão ao qual recorrem os estados democráticos modernos para ocultar sua face mais autoritária. Se era espantosa a naturalidade no modo como o noticiário da semana passada informava que um traficante havia ordenado o ataque a Rocinha de dentro do presídio em Rondônia, é ainda mais espantoso que o conflito pelo domínio do território mais simbólico da cidade aconteça na mesma semana da condenação a 45 anos de prisão do ex-governador Sergio Cabral, acusado de desviar recursos em torno de R$ 220 milhões ao longo de dois mandatos, os mesmos em que a Rocinha teria sido “pacificada” (a criação da UPP na favela data de 2011). Tudo se passa como se  não houvesse nenhuma relação entre os dois presidiários cariocas, mas se um exibe poder em Rondônia a ponto de conflagrar a Rocinha, o outro se esvazia a cada dia que a justiça lhe aplica mais uma condenação, como a perda de seus direitos políticos.

No vácuo de um estado em falência fiscal e política, a “guerra da Rocinha” tornou-se o paradigma de governo perfeito para exibição de poderio militar federal, também por coincidência no mesmo momento em que um general alude à necessidade urgente de uma intervenção das Forças Armadas, da construção de um discurso de ordem que se espalha como rastro de pólvora nas ruas e nas redes sociais –  tomadas de sintagmas como “caos no Rio”, “linha de tiro”, “território ocupado” –, e de relatos de diversas formas de “abandono do poder público”, aqui entendido como apelo de intervenção e proteção por um Estado forte exatamente onde hoje o governo é mais fraco. A cada vez que o Estado mostra sua face violenta, o faz em direção aos mais fracos – pobres, negros, mulheres, moradores de favela – em favor dos mais fortes. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. É nessa combinação perversa que a Rocinha se oferece como um perfeito teatro do absurdo: a polícia que invade é a segunda mais violenta do país que tem a polícia mais violenta do mundo.

Nesse ponto em que polícia e política se misturam, vale mencionar o relato colhido pelo canal de notícias Meio no Small Wars Journal, segundo o qual haveria uma disputa pela produção de cocaína nas Américas depois da deposição das FARC, na Colômbia, elemento que estaria acirrando a disputa de poder entre as facções criminosas brasileiras. Isso explicaria a ruptura entre PCC e Comando Vermelho, em disputa para se tornaram líderes internacionais. Por fim, nunca é demais lembrar a cidade do Rio de Janeiro foi um dos cenários decisivos para o avanço do então golpe civil-militar de 1964. Hoje, as trilhas da floresta da Tijuca parecem ser o caminho aberto para o avanço das Forças Armadas sobre territórios a serem antes conflagrados e, depois, dominados.

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