Antonio Candido em 1982

Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, 1982

Madalena Schwartz/ Acervo IMS

Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, 1982

Antonio Candido (1918-2017)

Literatura

12.05.17

Antonio Candido foi, segundo Paulo Roberto Pires, “o mais elegante dos transgressores. Encarnou um Brasil que hoje, no momento de sua morte, é empurrado para o obscurantismo e o conservadorismo”. Leia também nota de Elvia Bezerra lembrando dois breves encontros com o crítico literário, que entre 1992 e 2008 foi Conselheiro do Instituto Moreira Salles. Ainda neste post, artigo, carta e vídeo de Candido, que morreu na madrugada do dia 12 de maio, aos 98 anos.

 

A transgressão pela clareza

Paulo Roberto Pires

Antonio Candido foi o mais elegante dos transgressores. Com serenidade e determinação, implodiu as pompas da universidade e dos estudos literários, dinamitando na surdina fronteiras entre disciplinas e hierarquias rígidas. A partir dele, a crítica literária foi forçada a abandonar o impressionismo puro e simples para se vertebrar como reflexão teórica. Com ele, a sofisticação da análise formou um par perfeito e raro com a clareza de exposição. No que escreveu e ensinou, mostrou ser impossível apartar literatura de sociedade, bem como fazer dela simples documento da História. Mais do que simplesmente crítico e professor, foi intelectual militante em suas convicções socialistas. Em tudo e por tudo isso, encarnou um Brasil que hoje, no momento de sua morte, é empurrado para o precipício do obscurantismo e do conservadorismo.

Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959) é de longe seu livro mais citado e discutido. Foi datilografado na mesma Remington em que Sérgio Buarque de Holanda escreveu Raízes do Brasil. Simbolismo pouco é bobagem: na máquina de escrever que o amigo lhe dera de presente, tornava-se físico o vínculo espiritual a um dos para ele seminais “intérpretes do Brasil”­– os outros dois eram, a seu juízo, Gilberto Freyre de Casa-grande e senzala e Caio Prado Junior com sua Formação do Brasil contemporâneo. No trio, identificava a ruptura com o passado de um país que, por princípio ético e ideológico, também rejeitaria: “traziam a denúncia do preconceito de raça, a valorização do elemento de cor, a crítica dos fundamentos ‘patriarcais’ e agrários, o discernimento das condições econômicas, a desmistificação da retórica liberal”, escreve ele no famoso prefácio à edição de 1967 de Raízes.

 

Antonio Candido em 1982Madalena Schwartz/ Acervo IMS

Antonio Candido, 1982

Candido percorreria este caminho pelas vias da literatura e dominando com maestria a forma premeditadamente inacabada do ensaio. Com exceção da Formação e de Introdução ao método crítico de Silvio Romero e Os parceiros do Rio Bonito – estes últimos resultados de teses de mestrado e doutorado­ – toda sua obra é assentada sobre as bases móveis dos ensaios de tiro curto e alta densidade analítica enfeixados sob títulos como Tese e antítese (1964), Vários escritos (1970) e O discurso e a cidade (1993). Em 1958, um ano antes de publicar a Formação, ele observa: “as águas ondulantes da literatura revelam muitos dos seus arcanos aos barcos ligeiros, que as singram familiarmente, mais do que à perspectiva solene dos couraçados”.

A familiaridade com o ensaísmo vinha da juventude, mais exatamente da revista Clima. Nos 16 números publicados entre 1941 e 1944, o grupo formado por ele, Gilda Mello e Souza (sua futura mulher e mãe de suas filhas), Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Rui Coelho e Lourival Gomes semeou uma bem dosada provocação aos cânones cerimoniosos da crítica brasileira, combatendo ao mesmo o tempo o achismo coroado nos jornais e o formalismo das cátedras. Uma pérola dessa época que Candido nem sempre gostava de revisitar, “O grouchismo”, foi publicada no segundo número da serrote (veja mais abaixo) como uma espécie de amuleto, esconjurando a empáfia e a pretensão das páginas da revista.

O ensaísmo de Antonio Candido abrange na maturidade um formidável arco de possibilidades. Em “Esquema de Machado de Assis”, por exemplo, é didático como só os melhores professores conseguem ser. “Dialética da malandragem” parte das Memórias de um sargento de milícias para uma leitura ambiciosa, no melhor sentido do termo, de uma faceta do caráter nacional. Em “Quatro esperas” atinge alturas impressionantes em voo livre sobre Kafka, Kaváfis, Dino Buzatti e Julien Gracq, prosadores e poetas que traduzem “um sentimento que em nosso tempo se tornou frequente, às vezes obsessivo: a expectativa de perigos iminentes, quase sempre com suspeita de catástrofe”.

Antonio Candido (sentado ao centro) com o grupo da revista “Clima”

A opção pelo ensaio é, também, a opção pela interlocução mais direta possível com o leitor. Não há texto de Antonio Candido contaminado por jargão ou carregado de terrorismo bibliográfico. A clareza, atestado inequívoco de probidade intelectual, jamais barateia a complexidade; ao contrário, torna ainda mais notável a originalidade de suas leituras. Roberto Schwarz, um de seus alunos mais brilhantes, fala para definir o mestre em “escritos que abrem mão da terminologia e da exposição científicas, mas não da disciplina mental e dos conhecimentos correspondentes”. Bingo.

Não por acaso, foi Antonio Candido quem assinou o projeto editorial que, em 1956, resultou no mítico Suplemento Literário do Estado de S. Paulo. Editado por Décio de Almeida Prado, foi por décadas uma referência para um jornalismo literário inteligente e de grande alcance.

Na enxurrada de artigos, obituários, posts e tweets sobre Antonio Candido desse pouco memorável 12 de maio, grudei no trecho de um depoimento ao curso livre “Ética” (confira no vídeo mais abaixo), organizado por seu grande amigo Adauto Novaes, que de manhã cedo me deu a notícia de sua morte: “A ética da transgressão é a negação das normas? Não, é mostrar que certas normas já estão superadas e começar a transgredir praticando as boas normas. Jogaríamos fora tudo quanto é hábito sedimentado, esclerosado, mofado, em benefício de condutas que são transgressivas agora e que serão éticas daqui a pouco”.

Paulo Roberto Pires é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e editor da serrote.

 

Uma nota

Elvia Bezerra

Foram apenas dois encontros. O primeiro, no auditório em que se fazia a entrega de prêmio da União Brasileira de Escritores, no Rio. Não lembro o ano. O professor Antonio Candido estava sentado, sozinho, na fila atrás de mim. Assim que terminou a cerimônia, saí do meu lugar, sentei-me ao lado dele e lhe disse que sabia quase de cor o seu estudo de introdução ao Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira, que ele assinara com Gilda de Mello e Souza.

“À medida que vou envelhecendo, vou gostando cada vez mais de Bandeira”, ele me disse, com a “simplicidade do requinte” que o caracterizava e que – penso eu – o aproximava naturalmente do poeta de Pasárgada.

Muitos anos depois, já em 2014, eu lhe telefonei convidando-o para gravar um depoimento no projeto “Visões da Literatura Brasileira”, aqui do Instituto Moreira Salles, em que reunimos longas gravações de críticos literários brasileiros. Evitando pronunciar o antipático “não”, ele passou a me contar uma historinha, que procuro reproduzir agora, esperando não traí-lo se trocar uma palavra por outra. Quase posso jurar que foram exatamente estas: “Minha filha, outro dia eu peguei um motorista de táxi muito sábio que me disse o seguinte: ‘Doutor, gente é como se vê em bula de remédio: tem prazo de validade’”.

Timidamente, sem querer contradizê-lo, pedi licença para discordar, ao mesmo tempo que – havia jeito? – lhe disse que era obrigada a respeitar sua opinião. Ou melhor, a do motorista de táxi, a que ele recorria para declinar do meu convite e tornar a negativa até mesmo divertida. Nem assim deixei de sentir, no tom de voz delicadíssimo, uma firmeza superior. Pareceu-me inquestionável. Grata pela recusa – sim, foi isso, até a recusa foi agradável –, nos despedimos.

Sem dúvida, a filosofia do chofer lhe foi providencial, mas imagino que nestes três últimos anos de vida, desde que nos falamos,  o professor Antonio Candido deve ter pensado pouco na bula de remédio e muito mais no poema “Consoada”, de Bandeira, aquele em que o poeta se declara pronto para receber a “Indesejada das gentes”, certo de que ela, ao chegar, encontraria “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.

São raros os que podem recitar esses versos como uma verdade íntima, pessoal. Bandeira pôde. Desconfio que seu crítico e leitor devotado, também.

Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.

Antonio Candido, sentado ao lado de Walther Moreira Salles (o segundo da esquerda para a direita), reunido com o Conselho do IMS

 

Manifesto grouchista

Aos 23 anos, o crítico literário Antonio Candido publicou na revista Clima o manifesto “O grouchismo”. Nele, com seu característico humor sutil, defende que “só em Groucho Marx existe a perfeita solução para os males individuais e coletivos”. Em um texto singular de sua vasta obra, Candido identifica nas comédias de Groucho dois princípios que considera fundamentais: o “otimismo criador” e a “rejeição em bloco do convencional”. O ensaio foi republicado na segunda edição da serrote, em julho de 2009, e está disponível no site da revista.

‘O grouchismo’, por Antonio Candido | revista serrote

 

Tristeza e solidariedade

Em carta aos amigos Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, Antonio Candido expressava sua profunda tristeza e solidariedade pela partida, naquele abril de 1988, de Hélio Pellegrino, um dos integrantes do famoso quarteto dos mineiros. “(…) numa hora dessas não consigo pensar em cada um, mas em vocês três, mutilados do quarto amigo, cuja falta vão com certeza sentir em conjunto, como um corpo que perdeu uma das partes essenciais”, escreveu o crítico, dizendo ainda que os “brilhantes cadetes de Belzonte que conquistaram o Rio” fazem parte de um mundo do qual ele já sentia saudades.

O mundo de que já tenho saudades | Correio IMS

© Alécio de Andrade, ADAGP, Paris, 2016. Courtesy Instituto Moreira Salles

Antonio Candido, crítico literário, Fernando Sabino, escritor, e Otto Lara Resende, escritor e jornalista
Paris, 1965

 

Sobre Shakespeare e legitimidade

Em 1992, ao participar do seminário “Ética”, organizado por Adauto Novaes, Antonio Candido escolheu a peça Ricardo II, de Shakespeare, como ponto de partida para sua palestra. O crítico apontava nesta obra do dramaturgo inglês a discussão de valores fundamentais para a sociedade, principalmente a legitimidade. “O que é bom, o que é mau, o que é certo, o que é errado, se organiza em torno da legitimidade. Por quê? Porque se organiza em torno da obediência ou da desobediência ao rei. É uma peça em que nós temos o conflito da obediência com a desobediência, em outras palavras, do mando com a transgressão”, explica ele neste resumo de um vídeo feito na época, e cedido ao Blog do IMS por Adauto em 2013, ano em que Antonio Candido comemorava seus 95 anos.

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