Fazia uns três anos que eu estava escrevendo uma novela policial ambientada em São Paulo, quando, em 2012, esbarrei num personagem, um falso conde chamado Emanuel, e me interessei em acompanhar suas peripécias amorosas em um período impreciso do Brasil colonial. Logo percebi que se tratava de uma farsa erótica, sem nenhum rigor histórico. Interrompi a narrativa policial porque me pareceu muito mais sedutor e desafiador escrever algo tão diferente do que escrevi até agora. O nome do romance, ainda em processo, é A felicidade genital.
No dia anterior, depois que Leonor saiu batendo a porta da alcova, Emanuel continuou deitado na cama e acabou cochilando. Sonhou que viajava num navio perseguido por piratas. Tiros de canhão atingiam a lateral da embarcação a todo instante. O conde tratava de refugiar-se no porão e, ao descer a escada, descobria o local inundado. Um corpo boiava em sua direção, um corpo de mulher. Com água até a cintura, paralisado por um misto de fascínio e repulsa, ele aguardava que o cadáver flutuasse para mais perto, a fim de ver-lhe o rosto. Nesse momento, foi despertado na alcova pelos sinos da igreja, que convocavam os fiéis para a missa das seis. Os lampiões já estavam acesos na rua.
Acordou encharcado de suor e com um gosto de ontem na boca, embora ainda fosse hoje, incomodado com algo que lhe espetava as costas. A lima de unhas que a ruiva esquecera, um artigo caro, francês, exclusivo. Teria de devolver, antes que Leonor usasse isso como pretexto para tentar uma reaproximação. Mandaria Ponciano entregar, acompanhado de um ramo de flor – não, nada de flor; desta vez o rompimento era definitivo.
Essas considerações ocupavam a mente de Emanuel na hora em que seu ouvido captou o barulho na fechadura e a porta da alcova se abriu, deixando entrar a luz débil do corredor e a ruiva, que voltava para resgatar sua lima. O conde não se mexeu, enquanto gastava alguns segundos avaliando a conveniência de pedir que ela devolvesse a chave; talvez não fosse uma boa ideia, podia irritá-la.
Da posição em que se encontrava, tinha a visão parcialmente bloqueada pelo biombo. Por esse motivo, demorou um pouco até perceber que quem havia entrado no aposento, e se dedicava agora a acender o lampião que ficava pendurado junto à porta, não era Leonor, mas outra mulher.
Ela fechou a porta, removeu o lampião do gancho e o depositou ao lado do biombo. Nesse ponto, Emanuel perdeu a chance de denunciar sua presença na alcova – bastaria tossir. Preferiu continuar quieto na penumbra, acompanhando com curiosidade os movimentos da desconhecida. Quando pressentiu o que iria acontecer, era tarde demais e daí qualquer gesto ou ruído seria inapropriado. Tratou de conter até mesmo a respiração.
Depois de colocar no chão a bacia de louça que estava sobre o móvel, a mulher ergueu o vestido, agachou-se e, com um grande suspiro, que se converteu num gemido de satisfação, começou a urinar. Mijou como se há muito precisasse, em tal volume que o conde, de olhos cerrados no escuro, entregue à fruição inesperada que aquele ruído propiciava, sorriu imaginando se a bacia não iria transbordar. De súbito, cessou. E jatos cada vez mais curtos e espaçados indicaram que ela estava aliviada. Emanuel abriu os olhos.
A mulher ajeitou o vestido, recolheu o lampião e avançou com ele à frente do corpo, ainda sem dar pela presença do conde na cama. Quando ele se moveu, ela soltou um grito e por pouco não deixou cair o lampião.
Quem está aí?, perguntou, retrocedendo, receosa. Nico?
Sou um amigo dele.
O conde levantou-se da cama e se aproximou da janela, para que ela pudesse vê-lo na claridade que a cortina deixava passar.
O cronista está em viagem pela África, informou.
A mulher observou a cama vazia e depois veio para perto dele, suspendendo o lampião.
Você não é o conde?
Sou. Emanuel.
Estive na sua casa uma vez, com o Nico. Já faz muito tempo…
O conde não se lembrava. Nem poderia: só tinha olhos para Agnes na ocasião. Ela então informou seu nome com uma espécie de pompa, como se fosse a única fala de sua personagem numa peça teatral:
Lucia Aragão.
Era um pseudônimo. Na verdade, ela se chamava Maria-Elisa Medeiros, ia fazer 21 anos e estudava piano e composição num seletivo conservatório de Lisboa, embora não tivesse recursos para isso. Era filha de um armeiro, a família se apertava nuns cômodos em cima de uma oficina distante do centro. Ela dispunha de uma bolsa concedida pelo imperador em pessoa, um pouco por seu inegável talento musical – aos dez anos, já era apontada como uma virtuose ao cravo – e em boa parte porque o pai dela cuidava das armas de Sua Majestade, durante as temporadas de caça na colônia.
De férias do conservatório, Lucia voltava a ser em casa a filha rebelde e temperamental. Contra a vontade paterna, acalentava outras ambições artísticas. Queria ser atriz de teatro, ocupação que o pai via como uma forma disfarçada de rameiragem. As discussões entre os dois nunca cessavam.
Depois que acabar a escola de música, você faz o que quiser da vida, dizia o armeiro, um sujeito sempre com uma barba de dias na cara escurecida pela fuligem, que parecia ter aderido à sua pele.
Vou ser atriz, queira você ou não.
Peço apenas que não use o meu nome.
Nunca usei, não é agora que vou precisar, ela retrucava, ranheta.
A mãe nada dizia. Acompanhava as brigas de seu canto, sem intrometer-se, achando curioso que a filha expressasse o mesmíssimo desejo que sentiu quando adolescente. A diferença é que tivera de se curvar à vontade paterna, primeiro, e em seguida de se conformar com uma precoce rotina conjugal – sim era a palavra mais usada no reduzido vocabulário cotidiano dessa mulher. Seu sonho de ser atriz virou uma piada que o marido repetia de vez em quando, por vício, e da qual nenhum dos dois ria mais. Maria-Elisa, que herdara a beleza da mãe, funcionava como uma vingança que lhe aquecia o coração, que, por sinal, iria matá-la em poucos anos.
Quando estava na colônia, Lucia era uma das amiguinhas de Nico Borges.
Ele tinha por hábito celebrá-las nas crônicas, a ponto de muita gente acompanhar suas peripécias amorosas com interesse de folhetim. Para qualquer dama, aparecer nos escritos de Borges significava o mesmo que admitir um caso com ele. Muito compreensível, portanto, que causassem tanto alvoroço os textos em que o cronista, na hora de nomear a amada do momento, recorria a figuras femininas da mitologia ou apenas a iniciais, deixando entrever que se referia a mulheres indisponíveis Mais de um marido limpou pistolas tarde da noite pensando em Borges. Outros, um tanto complacentes, sentiam alívio ao saber que ele andava em viagens por mares distantes – e torciam por naufrágios. Até fazia sentido o boato de que alguns desses maridos, para se verem livres da ameaça, custeavam os constantes deslocamentos do cronista pelo mundo afora.
Lucia percorreu os cantos da alcova, acendendo os lampiões. E de repente a atravessou a suspeita de que estava prestes a atrapalhar um encontro. Ela olhou para o conde – ou melhor, para a fama dele.
Você está esperando alguém?
Não…
Lucia continuou fitando o rosto de Emanuel, como se tivesse direito a uma resposta menos lacônica.
Nico me deu uma cópia da chave, venho aqui de vez em quando… Meditar, o conde improvisou.
Ela espiou a lima na mão dele e pareceu captar a fragrância da ruiva, que ainda flutuava pelo ambiente. O sorriso irônico mostrou dentes de baixo desalinhados, o que conferia um ar moleque ao seu rosto. Emanuel contra-atacou:
E você? Entrou aqui só pra…
Ele completou a frase usando a lima para indicar a bacia junto ao biombo. Lucia caiu na risada. O conde aproveitou para observá-la melhor.
Tinha olhos verdes e espessos os cabelos, quase crespos, e sua pele clara, depois de exposta ao sol do trópico, levava de empréstimo para a Europa, por meses, uma cor que poderia ser chamada de cobre, se o cobre fosse mais valioso. Suas colegas de escola de música, pálidas como irmãs de suicidas, a desprezavam por isso e, acima disso, por seu fulgurante talento. Lucia estava destinada a ser uma grande concertista, a triunfar num mundo competitivo e de predomínio masculino. Os zigomas altos davam ao seu rosto um ar de nobreza, uma altivez de quem mirava de cima essas paixões menores e tão humanas.
Embora não fosse de gastar tempo excessivo diante do espelho, nas vezes em que se via, Lucia gostava do que via. Gostava dos seios inesperadamente volumosos e da curva da anca, que Nico Borges cantou num verso guloso. Tudo herdado da mãe – aliás, quem detivesse a atenção na mãe poderia ter uma ideia bastante precisa de como Lucia seria quando mais velha. Uma mulher de atrasar a partida de navios, como o cronista escreveu.
Quando ela parou de rir, lacrimejava e Emanuel notou que seu belo nariz arrebitado estava vermelho.
Pra falar a verdade, estou morrendo de fome, Lucia disse. Tem alguma coisa aqui pra comer?
O conde não sabia e a ajudou a vasculhar a alcova. Encontraram, numa das gavetas do armário que ficava no fundo do aposento, uma lata de biscoitos de aveia de idade incerta, farelentos e sem sabor, e um pote com uma substância viscosa e de cheiro pungente, que nenhum dos dois se atreveu a provar. Ambos sabiam que Nico Borges, em suas viagens pelo mundo, vivia exposto por sua curiosidade a hábitos alimentares improváveis.
O achado mais precioso, no entanto, veio da parte superior do móvel: uma garrafa de aguardente envelhecida, que Emanuel descobriu atrás de uma pilha de livros, que não tinham outra função a não ser ocultar a bebida, já que eram todos do mesmo autor – o próprio Borges. Na certa, o conde imaginou, o cronista reservava a aguardente para uma ocasião especial. Por isso, perfilou-se e, com a maior solenidade possível, e a adesão cúmplice de Lucia, declarou aquele um precipuissimum momentum. E, antes de remover a rolha da garrafa, examinou, contra a luz da janela, o líquido dourado no qual flutuavam micropartículas esverdeadas. Os dois beberam direto no gargalo a aguardente de sabor rascante e de um perfume inusitado, que lembrava sândalo.
O que interessa é que, no terceiro gole, estavam rindo, relaxados, de episódios envolvendo Nico Borges, sentados lado a lado na cama; depois do quarto gole, Lucia, que tinha o costume de falar muito perto do interlocutor, aspergiu o rosto de Emanuel com fagulhas de biscoito ao pronunciar a palavra palavra, e engasgou de tanto rir. O conde a socorreu, tocou-a – e nesse momento a desejou. Quando Lucia se recompôs, de novo lacrimejante, os dois se olharam, sérios. E se beijaram.
Mais tarde, Borges diria que trouxera a aguardente de uma viagem ao Norte porque a bebida continha uma mistura de ervas afrodisíacas.
Verdade ou não, os beijos entre Emanuel e Lucia se prolongaram e conduziram à etapa das carícias. Ele fez com que ela se deitasse e deitou-se por cima dela. A garrafa rolou pelo chão da alcova, transformando o que restava de seu conteúdo numa mancha amarelada no tapete, que nunca desapareceu por completo.
O conde soltou a fita que fechava o decote de Lucia, e não precisou fazer mais que isso: a pressão do seio aprisionado bastou para liberá-lo do vestido. Era um seio lindo, e Emanuel cobriu-o de beijos, sentindo o corpo de Lucia retesar-se sob o seu, enquanto as unhas dela passeavam por sua nuca. Quando ele quis levantar-lhe o vestido, Lucia o deteve, segurando sua mão com delicadeza.
Não, por favor.
E livrou seu corpo do peso do conde, deslocando-se para o lado.
Ora, Emanuel acumulava uma cota considerável de experiência em trâmites com o mundo feminino, já tinha presenciado um bocado de coisas na hora do amor. Havia mulheres que, apesar de liberadas, não admitiam copular no primeiro encontro. Umas que nunca aceitavam dar ou receber prazer oral. Outras que choravam depois de gozar. E ainda aquelas que, por tabu ou recato, não permitiam nenhum tipo de luz na alcova.
(Existiam, é claro, as prostitutas, as receptivas índias e, é bom não esquecer, as negras, sempre submetidas à força aos caprichos sexuais e taras de seus proprietários; o conde conhecia ao menos um par de histórias sórdidas envolvendo ramos da própria família.)
No caso de Lucia, ele teve de considerar outro motivo para aquela interrupção inesperada: o vínculo de ambos com N.Borges (como o cronista assinava seus escritos).
O conde sabia que, de sua parte, nenhum entrave ético o teria impedido de ir até o fim. Racionalizava: Lucia era apenas uma das mulheres na colônia a quem Borges dava atenção, sexo e, em algumas circunstâncias, dinheiro – as três coisas sempre em quantidades pequenas, como ele mesmo apregoava.
Lucia levantou-se da cama, virou-se para Emanuel e, sorrindo com seus dentes tortos, reacomodou na prisão do decote o peito mais bonito que ele tinha visto, apalpado, beijado e, por fim, perdido a chance de mordiscar na vida. Ver aquele peito deixou-o com vontade de escrever poesia.
Os amigos, em geral, e as amantes, em particular, não ignoravam que o gosto do conde por seios não ficaria desconfortável se fosse classificado como fixação. Miguel Pontes, poeta e analista diletante da alma humana, apontava como razão a ausência do seio materno, negado a Emanuel desde seu primeiro minuto de vida.
Quem o visse estirado de costas na cama, com os cotovelos fincados no colchão macio, e atentasse para o volume que a calça justa exaltava entre suas pernas e depois para a expressão em seu rosto, não teria dificuldade para concluir que, naquele momento, só o desejo do conde não era menor do que sua frustração.
E quando Lucia disse:
Outro dia.
Emanuel não deu crédito, enxergando na frase um mero valor retórico, quase uma palavra de consolo. Um acordo destinado a não ser cumprido. Nem mesmo na hora em que ela, após arrematar num laço gracioso a fita do decote, curvou-se para beijá-lo – no rosto – e sussurrou um prometo perto de seu ouvido, ele acreditou.
Agora preciso ir, Lucia anunciou.
O conde ergueu-se da cama e postou-se em pé ao lado dela, com uma derradeira carta para pôr no jogo. Uma aposta arriscada. Alguém com um pouco mais de apreço pelos bons modos diante de uma dama talvez hesitasse em fazê-la. Mas Emanuel não era alguém que prezava em excesso os bons modos, em especial diante de uma dama que faria qualquer coisa para rever, de preferência sem roupa. Continuava de pau duro, e não tinha nenhuma intenção de ocultar isso dela. Pruridos éticos esmurravam sua porta, mas resolveu não atendê-los. Estava tão próximo de Lucia que pôde sentir o cheiro de suor agridoce que a respiração ofegante expelia pelo decote convertido em fole. Media um palmo e meio a mais que ela. Por isso, quando falou:
Eu pagaria para ver a senhora urinando de novo.
Lucia, depois de rir, encabulada pela primeira vez, teve de ficar na ponta dos pés para beijá-lo, agora na boca, um beijo breve, que serviu muito mais para deixar nos lábios dele resquícios do biscoito de aveia, que o conde, de forma sensual, recolheu com a ponta da língua para o interior da boca.
Bobo, ela disse. Faço isso de graça quando você quiser.
Então Lucia se foi, deixando Emanuel envolto numa agradável nuvem de embriaguez, que misturava, aos fluidos da aguardente, o aturdimento da experiência que tinha acabado de vivenciar. Ele recolheu a garrafa do chão, lamentou a mancha que ainda se expandia no tapete e também que só restassem umas poucas gotas da bebida, que mal lhe umedeceram os lábios, onde continuava sentindo a delicada pressão da boca de Lucia.
Pensou em Nico Borges.
Teria de providenciar uma aguardente de boa procedência para compensá-lo. Um contrabandista com banca de queijos e embutidos no mercado central fornecia, por baixo do pano, bebidas de qualidade; mandaria Ponciano encomendar no dia seguinte – Borges era esperado na colônia nas próximas semanas.
Mas e quanto a Lucia, como o amigo reagiria?
Na prática, o delito ético já tinha acontecido. Ou beijar e apalpar o peito de uma mulher que mantinha um caso com outro homem não configurava um ato de infidelidade? Como ficaria a amizade entre eles?
Emanuel apagou um por um os lampiões da alcova, até restar apenas aquele que o guiou até a porta e que, ao passar ao lado do biombo, iluminou por um momento, na bacia transbordante de um líquido amarelado, coágulos escuros, que informavam o que havia inibido Lucia de consumar o ato.