Estou trabalhando neste romance, Marrom e amarelo, já há três anos (o contrato para o livro com a Alfaguara foi assinado em 2012, quando esta onda mundial de debates em torno do racismo nem sequer estava sugerida no horizonte). O volume do material recolhido é expressivo, na verdade, imenso. O que dizer? Parece um livro sobre racismo no Brasil (e é), mas penso que está mais para uma narrativa sobre modos diversos de vitória, de afirmação vitoriosa. Volto à temática da identidade que, à exceção da sátira O ano em que vivi de literatura, tem sido a marca da minha produção no campo da narrativa longa ficcional.
Águas de lastro
No meio daqueles olhares aguardando eu falar, apresentar um posicionamento que justificasse minha presença como o último membro convocado praquela comissão montada às pressas pelo novo governo, minha postura, meu tênis, minha calça jeans, minha camiseta, nada aleatória, com a estampa dos Public Enemy no peito, a conversa que minha mãe teve comigo e meu irmão, quando eu tinha sete anos e ele seis, tentando diminuir a perplexidade desencadeada nele pelas grosserias ditas por três coleguinhas seus do jardim de infância, coleguinhas que, logo no segundo dia de aula, chamaram ele de picolé de piche, de saci, de maguila gorila, porque numa brincadeira de pega-pega durante o recreio ele não se submeteu aos comandos deles como uma criança brasileira negra deveria se submeter a um trio de crianças brasileiras brancas naquele ano de mil novecentos e setenta e três. No meio dos olhares estáticos dos que chegaram antes de mim na comissão, da imagem da minha mãe segurando o desespero pra atenuar a perplexidade do meu irmão, as pregações dela que passaram a acontecer com frequência, ainda naquele ano de setenta e três, porque eu, talvez querendo confrontá-la, talvez querendo responsabilizá-la pela diferença que antes não existia daquela forma agressiva na minha vida e na do meu irmão e se repetia nas frases que se repetiam nas bocas não dum trio de capetas brancos irrelevantes, mas de quase todos os colegas, de alguns funcionários e possivelmente até de alguma professora mais descuidada daquela escola, frases sobre não sermos irmãos de verdade, irmãos de sangue, mesmo ele respondendo e eu respondendo, como crianças respondem entregando tudo que lhes pertence, Sim, Sim, A gente é sim irmão de sangue, porque, no padrão dos que perguntavam, no padrão de Porto Alegre, no padrão do Brasil daquele ano de setenta e três, eu, de pele bem clara, cabelo liso castanho claro puxando pro loiro, era um branco, e ele, o meu irmão, de pele escura, marrom, cabelo preto crespo, era um preto, perguntar pra ela de qual raça a gente era, e ela, dissimulando a própria raiva, responder que raças não importavam, e eu insistir, e ela então afirmar, em fala que seria replicada não só naquele ano de setenta e três, mas por toda minha infância, que éramos negros, que a nossa família, ela, de pele clara, cabelo liso, meu pai, de pele escura, menos escura que a pele do meu irmão, cabelo bem crespo, o meu irmão e eu, éramos uma família negra. No meio daqueles olhares dos caras da comissão, olhares que o meu evitava apanhar de punhado, minha mãe tentando anular a perplexidade do meu irmão, que tinha chegado do segundo dia de pré-escola mudado, minha mãe inventando a senha de sermos quatro negros, uma família negra, blindando meu irmão e blindando a mim pra sempre, meu aniversário de oito anos quando a minha tia, a irmã da minha mãe, apareceu com os seus dois filhos e também com um primo deles, o que tinha a minha idade, o que eu nunca tinha visto antes, o que, num momento de ruído na dinâmica de amortecimentos e ataques de crianças se conhecendo e se entrosando numa festa de aniversário, me elegeu seu oponente e ficou dizendo que, apesar daquele meu cabelo lambido, clareado, o cabelo do meu pai era pixaim, era carapinha, e só servia pra limpar a sola do sapato do pai dele, que era branco e tinha cabelo loiro de verdade e liso de verdade, o que me fez aguardar pra depois que terminasse a série de brincadeiras da dinâmica de crianças que se se entrosaram numa festa de aniversário, quando todas as crianças do aniversário estivessem cansadas, entediadas ou distraídas, aguardar o momento em que acabaria se descuidando e se afastando da área de observação dos adultos, pra me aproximar e, igual a todos os filmes de terror a que eu já tinha assistido na televisão, sendo monstro completo, levar as mãos até o seu pescoço, prensá-lo contra a parede e começar a esganá-lo, grunhindo Vou te matar, Depois meu pai vai matar o teu, e só não levar o estrangulamento a consequências mais graves porque meus dois primos, que eram alguns anos mais velhos do que eu, mas de porte físico menor do que o meu, se agarraram nos meus braços me obrigando a interromper a única reação que me pareceu justa, a de acabar com aquele guri, de acabar com qualquer branco que falasse mal do meu pai. No meio daqueles panacas e da sua curiosidade panaca, meu primeiro dia na tal da comissão, minha mãe, ainda com trinta e dois anos, conversando com nós dois ainda pequenos, meu irmão que nunca mais ficaria perplexo, minha mãe inventando uma regra pra quebrar o mundo, eu estrangulando o filho da puta do branquinho, a tarde de domingo em que meu irmão estava com dor de garganta e febre, e meu pai se preparando pra sair de casa até o campo de futebol do Parque Municipal Ararigbóia onde ia disputar um torneio quadrangular entre times da polícia civil e da polícia militar, e minha mãe pediu pra ele me levar junto, dele dizer que não dava porque ia ser um torneio disputado, tenso, e além do mais não ia ter quem cuidasse de mim, dela dizer que tinha certeza que ele ia encontrar uma solução, dele ficar contrariado, como às vezes ficava quando tinha de sair só comigo, mas acabar atendendo ao pedido dela, e no Ararigbóia ele, o meu pai, descobrir que o técnico do time dele não estava lá porque teve uma crise de cálculo renal e estava medicado em casa e que ele era o único com experiência suficiente pra ficar na vaga, vaga que pelo regulamento do torneio não podia ficar desocupada, e me deixar com quatro caras que já estavam fardados enquanto ele, assumindo a bronca, ia resolver as pendengas burocráticas da substituição do nome do técnico que não apareceu pelo seu e da inclusão do novo jogador, o que entraria no seu lugar, na ficha de inscrição e na súmula, e do mais alto entre os caras fardados, um meio careca, logo depois do meu pai se afastar na direção da outra lateral do campo, perguntar Esse guri branco desse jeito é filho do Ênio, um dos outros três responder É parecido com o Ênio, dos outros dois ficarem em silêncio, do mais alto insistir Branco demais, dum quinto cara fardado com o mesmo uniforme surgir por trás de mim e em seguida perguntar Temos novo contratado do time, e depois, sem me dar tempo de reação, Qual teu nome aí, novo contratado, e eu responder que era Felipe, tentando olhar pro rosto dele, mas tendo dificuldade porque ele estava na direção de onde vinha a luz do sol, e o cara alto meio careca dizer que eu era o filho do Ênio, e o recém-chegado dizer Que legal, Um gurizão forte, igual ao pai, e passar a mão pesada na minha cabeça dizendo Bah, piá, tu tá com jeito de quem vai ser zagueiro quebrador de centroavante, Bah, Olha a grossura dessas pernas, Tô botando minhas fichas em ti, e sair na mesmas direção do meu pai, e d’eu voltar a atenção pro cara alto meio careca, e o cara alto meio careca, com um sorriso de peixe morto, ficar olhando pros outros três enquanto coçava o queixo e, em micro intervalos frenéticos, ficar olhando pra mim também. No meio dos olhares dos que provavelmente já estavam se considerando os donos da comissão, a vontade de dizer que eu não era um deles, não era um afetado pseudonotável de merda igual a eles, minha mãe assustada e perdida diante dos dois filhos pequenos recém vindos da escola, semanas depois se arriscando pelo caminho mais longo, Somos negros, e torcendo pra um dia um de nós conseguir quebrar a porcaria do mundo por ela, eu, criança, sentindo pela primeira vez a vontade de matar e tendo a chance de matar, eu e meu pai no campo do Ararigbóia, um leve constrangimento, e nossas peles, crônicas, de escuridão diferente, um dia de março de mil novecentos e setenta e sete, o dia duma semana em que faltou água por cinco dias na zona centro-leste de Porto Alegre atingindo a rua onde a gente morava, e meu pai nos levando, pelo terceiro dia seguido, até o prédio onde trabalhava como perito da polícia civil, onde enchíamos dois galões com água filtrada e tomávamos banho, e era tarde da noite, e eu e Jonas estávamos excitados, um excitamento que vinha da irritação de não termos água em casa pelo quarto dia seguido, de ser tarde, por volta das onze da noite, mas que vinha também da discussão tipo discussão sem grandes motivos que costumávamos ter frequentemente, discussão que começou com um Vou tomar banho primeiro, que teve como resposta um Não, Mas não mesmo, Tu já tomou banho primeiro ontem e antes de ontem, Hoje eu é que vou primeiro, discussão que se alongou e que no momento da saída do meu pai do banheiro já tinha virado empurrões e xingamentos, virado eu atacando meu irmão com Vai se foder, neguinho burro de merda e ele contra-atacando com Vai tomar no teu cu, bicha sarará recalcada, meu pai empregava a palavra recalcado quando queria se referir aos mulatos claros conhecidos nossos que alisavam o cabelo e tinham vergonha de serem apontados como mulatos, negros, e aquilo foi o suficiente pra que ele deixasse a toalha recém usada de lado, agarrasse a nós dois pelas golas das camisetas e nos levasse até a sala de treinamento e musculação, um miniginásio onde além dos aparelhos de malhar tinha um ringue de piso de tatame, acender as luzes, fazer a gente subir no tatame, pegar uma corda de pular dizendo que se a gente queria brigar então ele ia fazer a gente brigar, atirar dois pares de luvas aos nossos pés, mandar a gente vesti-las, dizer que se a gente não lutasse, e enquanto lutasse não xingasse um ao outro de neguinho e sarará, ele ia nos surrar com aquela corda, olhei pra ele, pedi desculpas, ele disse pra eu não pedir desculpas pra ele, disse que eu, sendo o mais velho, o que tinha de dar o exemplo, tinha era de pedir desculpas pro meu irmão, mandou a gente vestir as luvas duma vez e se abraçar, ficar de rostos colados um no do outro, pegar a corda de pular e nos amarrar apertado dizendo que íamos ficar ali grudados um no outro pra pensar no que, Pelo amor de Deus, levava um irmão a xingar o outro irmão usando palavras e um tom de falar que só racistas usavam, ele apagou as luzes do miniginásio e saiu trancando a porta, voltando vinte minutos depois pra nos encontrar desamarrados, deitados no tatame do ringue, um próximo ao outro. No meio deles e da comissão deles, a certeza de que tudo o que eu não podia fazer era levantar e ir embora, minha mãe olhando pro meu irmão e depois pra mim, sabendo que eu nunca seria chamado de macaco como ele foi, minha mãe pintando sua família mestiça com a palavra negra, minhas mãos atacando um desconhecido, eu no Ararigbóia tentando compreender o que o homem alto estava querendo dizer, meu corpo maior amarrado contra o corpo menor do meu irmão, a manhã quando um cara da minha turma da oitava série, um cara tímido e bom aluno com quem eu até me dava bem, colocou duas bananas na mochila duma colega no intervalo das aulas, sem que ninguém percebesse, e ela, ao voltar pra sala acompanhada de outras duas colegas, percebendo que a mochila não estava na posição e no lugar onde tinha deixado, abriu o zíper e encontrou o pacote de papel pardo com as frutas dentro, pacote onde estava escrito com pincel atômico grosso EXPRESSO DA SELVA, e uma das acompanhantes gritou Meu Jesus e ficou repetindo Bananas, Duas bananas, Que horror, Que falta de respeito, desfazendo qualquer chance da situação passar despercebida pelo resto da turma, cara que acabou desmascarado porque era da seleção de basquete do colégio e eu também era da seleção de basquete do colégio e no dia seguinte, antes de começar o treino, quando entrei no vestiário pra trocar de roupa, surpreendi ele se vangloriando pra dois outros alunos que faziam parte da seleção de handebol, que treinava no horário anterior ao nosso, com certeza os dois mais mentalmente perturbados da equipe de handebol, a equipe mais mentalmente perturbada de toda a escola, e quando um deles perguntou sobre ela feder muito ou pouco foi que notaram a minha presença, se dando conta de que eu estava lá fazendo nada além de escutá-los, e eu não dar satisfação, e treinar como se nada tivesse acontecido, e no dia seguinte, tomado por uma frieza absoluta, ir à sala do diretor da escola e delatá-lo, o que resultou na suspensão dele da escola e na minha exclusão sumária do círculo do companheirismo macho alfa da equipe de basquete pela maior parte dos caras da equipe, maior parte que passou a se referir a mim como o dedo-duro e a me boicotar de todas as formas até que, dois meses depois, eu desistisse dos treinos e desistisse do basquete. Eu no meio daquela gente, sendo avaliado, mesmo já sendo oficialmente membro da comissão, minha mãe falando, minha mãe pregando, eu espreitando o primo dos primos, eu, o futebol, os outros e o meu pai se desdobrando, eu, meu irmão e a ordem pra lutar, eu dedurando um colega que tentou ferrar uma colega, um sábado de outubro de mil novecentos e oitenta e dois em que menti pros meus pais que ia de carona junto com outros dois colegas de escola pra casa da família dum deles em Gramado e que ia voltar no domingo, quando na verdade fui de ônibus pra Caxias do Sul pro Cio da Terra, um evento que estava acontecendo nos pavilhões do Parque de Eventos Festa da Uva e que tinha sido divulgado pelos organizadores como o primeiro encontro livre da juventude gaúcha, um festival de arte e debates onde não ia ter censura, onde não ia ter repressão, e lá me juntei a uns caras que acabei conhecendo na hora pra rachar uns garrafões de vinho, umas cucas e umas pernas de salame de porco, matar a fome, a sede, e depois me separar, ficar circulando entre os grupos de pessoas espalhados pelo parque, escutando os shows de longe, observando, tentando aprender o que aqueles hippies todos mais velhos do que eu sabiam e eu ainda não, e só na hora do show do Ednardo, lá pelas três da manhã, porque Ednardo começou a cantar Pavão Misterioso, eu me aproximei pra assistir, fiquei a uns cinquenta metros do palco, parado, absorto, até, quase no final da apresentação, um homem, meio em transe, passar falando em loop Não tem negro aqui, Não tô vendo juventude negra aqui, e eu, negociando com a sobriedade que naqueles dias era o padrão de regulagem da minha vida sem graça, seguir atrás dele, mantendo distância, falando também Não tem negro aqui, Não tô vendo juventude negra aqui, e continuar circulando e falando, por uns dez minutos ao menos, mesmo depois que ele desistiu do transe da fala. Eu, no meio daqueles olhares aguardando minha manifestação. Eu, pronto a dar mostra dos fantasmas que ocupavam meus pensamentos (fantasmas que foram as vezes em que me senti embaraçado por ser quem eu era, por estar onde estava; pronto a dizer que em nenhuma delas me senti tão obrigado a tomar a decisão de começar a me declarar negro como da vez em que me apresentei no Oitavo Batalhão Logístico pra seleção do serviço militar em mil novecentos e oitenta e quatro e presenciei a cena, a cena mais estúpida). Eu (sabendo que não passava dum desconhecido para eles, quase todos ali por indicação do novo governo), menos arisco, começando a falar e falando até chegar à altura do A pessoa nunca adivinha qual vai ser a gota d’água que, Bem, Vocês sabem, A minha gota d’água, como eu tava dizendo, foi esse dia da seleção pro Exército, Aquilo afetou minha cabeça por anos. E, na pausa que ocupou dois ou três segundos, pude ver nos seus olhos que, feito eu, não tinham a menor ideia aonde chegaríamos com as reuniões daquela comissão. Aqueles dias, vocês sabem, tão desprovidos da certeza do que é certo e do que é errado, Quase como estes de hoje, eu disse. O medo, o velho medo de sempre, eu disse. Então eles começaram a me escutar.